quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Muito além do PIB


Criada pelo governo e amplificada pela imprensa, a paranoia em torno do crescimento do PIB brasileiro ofende pelo tamanho da miopia de nossos economistas. Vendido como objetivo primeiro da gestão Dilma, confunde-se crescimento com desenvolvimento e, pior, dá-se sobrevida a um índice anacrônico e traiçoeiro. O PIB, contudo, tem seus defensores. Aliás, se crescemos, é devido, principalmente, ao peso de nossas valiosas commodities, cana, soja e minério. Batemos todos os recordes de produtividade agrícola, enquanto definhamos em uma riqueza que leva décadas para desenvolver-se: o capital humano.

Pois bem, deixo aos sábios economistas brasileiros um discurso de um deputado americano, feito em 1968.

"Yet the gross national product does not allow for the health of our children, the quality of their education, or the joy of their play. It does not include the beauty of our poetry or the strength of our marriages; the intelligence of our public debate or the integrity of our public officials. It measures neither our wit nor our courage; neither our wisdom nor our learning; neither our compassion nor our devotion to our country; it measures everything, in short, except that which makes life worthwhile.”
Robert F. Kennedy

Fica outra dica para a nossa equipe econômica: o site http://www.beyond-gdp.eu

Amartya Sen: "HDI is people-centered ... GDP is commodity-centered"

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Luta palestina


O conflito entre o Estado de Israel e o Povo Palestino ganhou contornos mais violentos recentemente. Teme-se que a escalada de violência repita os eventos de 2008, em que ocorreu o massacre de 1400 palestinos e a destruição de Gaza. Além das humilhações diárias a que os palestinos estão sujeitos, o uso desproporcional da força, com o assassinato de mulheres e crianças, envergonha o mundo.



Custo a me acostumar com a facilidade com que o ser humano realiza a guerra. Por mais que se tornem frequentes, a ponto de alguns noticiários ignorarem os conflitos geopoliticamente menos relevantes, a insignificância que a vida humana adquire nesses momentos é inquietante. Da visão humanista, contudo, é preciso partir para a analítica, uma vez que temos interesse em compreender esse processo belicoso. Daí que uma divisão precisa ser feita entre as clássicas guerras entre Estados e os conflitos não convencionais, intraestatais. A ampla variedade das lutas internas exige um recorte conveniente. Por isso, uma particular atenção será dada às lutas populares que buscam a emancipação política, das quais faz parte o caso palestino. A comparação entre os movimentos de independência e as guerras tradicionais será a ferramenta por meio da qual  a permanente guerra palestino-israelense será enquadrada.

"A guerra é a continuação da política por outros meios".

A célebre conceituação de Carl von Clausewitz evidencia o principal objetivo da guerra entre Estados: o interesse nacional. Para a sua consecução, a Realpolitik dos Estados modernos preocupa-se com objetivos estratégicos, econômicos ou territoriais. Questões ideológicas ou mesmo religiosas deixaram de pautar a ação estatal ainda no século XVII, finda a Guerra dos 30 anos (o tratado de Westfalia de 1648 é considerado um marco histórico). Uma característica é, contudo, comum a conflitos antigos e recentes, responsável em grande parte por sua brutalidade: ao se buscar os interesses nacionais, não se medem valores morais, mas ações pragmáticas e estratégicas. A sobrevivência de um Estado depende do poder que este detém no cenário internacional, objetivo pelo qual se justificam a invasão e o extermínio.

Os movimentos de independência e revolucionários são distintos da guerra interestatal por alguns motivos. Talvez o principal seja o caráter popular que os motiva. Enquanto as guerras convencionais são determinadas e dirigidas por agentes estatais, frequentemente contrariando a vontade da maioria (Vietnã, por exemplo), as lutas pela emancipação possuem uma ampla sustentação popular, ainda que comandadas por uma elite política ou econômica, como acontece amiúde. O poder, neste caso, não representa um fim em si mesmo, mas condição indispensável para a mudança da ordem opressora. Os valores morais e ideológicos não são apenas considerados, mas exaltados; são princípios que fundamentam a luta por uma nova sociedade. Assim ocorreram a Revolução Francesa, a Independência Americana, a Revolução Russa, a Revolução Cubana, a descolonização afro-asiática e tantas outras. E valores como a Liberdade, Igualdade, Independência e Justiça prosperaram...


Perdoem-me os reacionários, mas não nego certo apreço por esses movimentos. Embora considere as reformas o primeiro caminho, a mudança, muitas vezes urgente, dificilmente virá por meios pacíficos. Os lacaios que detêm poder e privilégios não largarão o osso, acredite. As lutas revolucionárias embasadas na soberania popular possuem, portanto, uma legitimidade nata, já reconhecida pelos sábios iluministas: “o  governo tirânico rompe o contrato social, permitindo ao povo o uso de seu direito à rebelião”.

Não é preciso ir muito longe para constatar o esforço reacionário para retirar a legitimidade da luta popular. Certamente simbólico, além de eficiente, foi tachar de “terrorismo” o principal meio pelo qual agem os movimentos populares. Junto com o terrorismo, começa-se a construir um discurso para estigmatizá-lo, associá-lo ao fanatismo, à brutalidade e à barbárie. Não pretendo defender qualquer tipo ação armada; a generalização que é, convenientemente, dada ao termo “terrorismo” dificulta uma diferenciação entre a luta popular e ações paramilitares cometidas por Estados ou grupos políticos (Talibã, Líbia, Al Qaeda).

Os palestinos utilizam um número bem variado de meios de luta. Desde os esforços diplomáticos para receber o reconhecimento de organismos internacionais (ONU, UNESCO...) e de Estados, passando pelas manifestações de rua, pela Intifada, pela organização política e, por fim, pelas lutas armadas. Os resultados não têm sido, contudo, alentadores. As poucas tentativas de paz foram superadas pelo regime de extrema-direita do Likud. A fragilidade da democracia de Israel é evidente na manipulação que a sociedade "civil" israelense sofre de seus líderes. Os ataques à Gaza reforçam o discurso de força, de amplo efeito sobre um povo completamente militarizado. Sem nenhuma legitimidade para manutenção da ocupação dos territórios palestinos, já que fere princípios elementares da dignidade humana, Israel conta com o uso bruto da força e do discurso ideológico. Se a primeira é cruel e assassina, a segunda pauta-se no preconceito e na mentira. Isso porque sua luta baseia-se na opressão, no assassinato, na humilhação,  atropelando valores como liberdade, direitos humanos, solidariedade, igualdade. Os estadistas e ideólogos sionistas apoiam-se em “princípios” religiosos e racistas para justificar o indefensável. São, na verdade, subterfúgios retóricos, pois Israel move uma guerra de conquista, em que valores morais são desprezados.



Do lado palestino, não se trata (ainda) de um Estado, mas de um povo que luta pela liberdade. Amparam-se no legítimo direito à rebelião, objetivando o exercício inalienável da soberania popular. Foram aviltados com o despojo de suas terras, processo ainda em curso. Os diferentes partidos políticos mostram as várias faces da resistência, a maioria pacífica. Questiono o uso da força por dois motivos: seu efeito concreto é desprezível e seu impacto na opinião pública internacional, negativo. O caminho deve ser a mobilização internacional pela causa palestina, como foi feito na África do Sul, durante o apartheid. É uma luta longa e muitas vezes ingrata, mas onde será possível colher algum resultado.



O fato é que, embora as ações armadas dos palestinos sejam ineficazes, não se pode comparar a luta pela liberdade com a luta pela conquista. Israel e palestinos possuem objetivos diferentes, desonesta e convenientemente confundidos pela imprensa. O povo palestino merece por fim à opressão e possui, portanto, legitimidade para prosseguir sua luta com todos os meios disponíveis.  

“E dificilmente é preciso mais do que um dia em Gaza para sentir como é tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo, onde cerca de 1,5 milhão de pessoas, em uma faixa de terra de aproximadamente 360 quilômetros quadrados, são submetidas a terror aleatório e punição arbitrária, sem nenhum propósito a não ser humilhar e degradar.” (Noam Chomsky)

domingo, 16 de setembro de 2012

Guerra Santa?


O mundo está horrorizado com a violência praticada por muçulmanos contra repartições diplomáticas estadunidenses ao redor do planeta. A lista de países inclui Nigéria, Iêmen, Egito, Tunísia, Líbano, Israel, Palestina Síria, Irã, Indonésia, Iraque, Sudão e Afeganistão. Impossível não considerar o caráter religioso do movimento, já que a onda de revolta foi desencadeada pela divulgação de um filme em que o profeta Maomé e sua religião são ridicularizados. Culpar o fundamentalismo religioso, contudo, simplifica a análise dos acontecimentos: radicais judaico-cristãos de um lado contra os já estigmatizados radicais muçulmanos, de outro. A explicação não é, entretanto, só superficial mas ingênua. Há de se considerar, ao menos subsidiariamente, os aspectos políticos envolvidos, que vão da Primavera Árabe à política externa do Departamento de Estado Americano para o Oriente Médio.




No fabuloso “O Grande Inquisidor”, conto dentro do clássico “Irmãos Karamazov”, Dostoievski descreve as especificidades da dominação exercida pela Igreja Católica. Após encarcerar Jesus, o inquisidor espanhol inicia um monólogo em que destrói os principais pilares da Igreja. Não é a fé que transforma o homem em rebanho, mas o medo, a fuga de uma realidade inconveniente e, especialmente, a rejeição da liberdade que supostamente fora ofertada pelo Criador. O livre-arbítrio seria, desse modo, um fardo demasiado pesado, sabiamente apropriado pela Igreja, por meio de uma miríade de construções em torno do medo. É em um misto de submissão e ignorância que o homem eventualmente encontra a paz.

Em que pese a importância da devoção religiosa como combustível para a intolerância e violência, é possível ir além da angústia espiritual descrita pelo mestre russo, sobretudo se desejarmos fazer um paralelo político com os acontecimentos recentes. Neste caso, convém analisarmos, rapidamente, a relação da Igreja com a constituição de uma identidade popular forte, aspecto caro a imperadores e a Estados em formação.  Não faltaram exemplos na história. Constantino, fundador da Igreja Católica, embora ele próprio cresse em outros deuses, foi sábio em perceber outras formas dominação além das batalhas. Mesmo o secular e iluminista Robespierre, após condenar e perseguir membros do clero católico, um dos pilares do Antigo Regime, forjou o culto ao Santo Marat, o jornalista incendiário da Revolução Francesa.

Infelizmente, a religião continua a ter papel de destaque na reafirmação dos nacionalismos. O caso mais bem acabado dessa relação encontra-se em Israel, onde nacionalidade e judaísmo se confundem, não só em despautérios sionistas, mas de maneira oficial, como demonstra a exigência do registro do cidadão israelense como judeu1.

Além de Israel, há outros Estados que perpassam por um lento e sofrido processo de consolidação nacional, notadamente os países árabes. Do imperialismo do século XIX ao processo de descolonização de meados do século XX, tais países ficaram sujeitos às disputas políticas das grandes potências mundiais. A Segunda Revolução Industrial incorporou ainda outro elemento explosivo: o petróleo. Verificando atentamente, percebe-se quão recente foram as “independências” da maioria desses Estados. É o caso, por exemplo, da Revolução Político-Religiosa Iraniana (1979), decorrência direta de décadas de “ocidentalização”  forçada, por meio do regime títere do xá Reza Pahlevi, que terminou por criar o regime teocrático atual. A ameaça recente de invasão militar, consubstanciada pela retórica agressiva de EUA e Israel, só garante a continuidade do autoritarismo religioso no Irã.

No território sitiado de Gaza, o partido Hamas, visando ao fortalecimento do nacionalismo palestino, tem acirrado o fundamentalismo religioso, evidente na imposição de certos costumes, como o uso do véu hijab pelas mulheres. O neo-apartheid imposto por Israel aos habitantes palestinos, além dos assassinatos e bombardeios, sem dúvida contribui para a identificação religiosa à causa territorial palestina. 

Poderíamos ainda falar do Afeganistão (1979-89; 2001), Paquistão, Líbano (1982, 2006), Líbia, Etiópia, Iraque (2003), mas não é o objetivo principal desta exposição. Importante, sim, é perceber a existência de uma hostilidade antiga direcionada pelos Estados Unidos a esses países. As efêmeras aproximações não foram suficientes para encobrir o objetivo único e irrestrito do Departamento de Estado americano: a consecução de seus próprios interesses.

Se o motivo religioso não pode, portanto, ser analisado isoladamente dos aspectos políticos, por que motivo ele é apresentado tão frequentemente como a causa principal dos distúrbios? É bem evidente que, retirando a legitimidade das manifestações, anula-se o efeito político almejado pelos revoltosos. Para Edward Said, autor de “Orientalismo”, não é apenas a imensa ignorância que move a caracterização estereotipada da cultura árabe ou islâmica. O etnocentrismo ocidental é favorecido quando se consegue distinguir com facilidade o outro; a civilização da barbárie. A representação da luta política em curso por seu aspecto estritamente religioso e fundamentalista faz parte de um projeto político mais amplo, ardilosa e eficientemente dissimulado.

É impossível precisar com exatidão a parte das manifestações que cabe ao fanatismo. Sem negá-la, ressaltamos o entrelaçamento da questão religiosa ao fortalecimento da nacionalidade, algo ambicionado por muitos Estados em processo de consolidação. O fato de as revoltas recentes estarem ocorrendo em países que passaram pela Primavera Árabe só fortalece esse argumento da construção da identidade. Dentro desse contexto de busca de autonomia e mesmo de sobrevivência, não é difícil eleger um inimigo do nacionalismo árabe. Após a queda dos grandes impérios europeus, a consolidação dos Estados árabes encontra na hostilidade bélica, política e cultural dos Estados Unidos a sua principal oposição e, logo, o alvo preferido dos ataques recentes.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

RETROCESSO





Temo estarmos regredindo como cidadãos. Além de fenômenos mundiais, que evidentemente nos afetam, a exemplo da valorização do consumo, do uso de automóveis cada vez maiores, do aumento da carga horário de trabalho e do preconceito, no Brasil o pensamento reacionário se acirra, particularmente, em algumas áreas. Busco fazer uma rápida descrição desse radicalismo, associando-o a suas possíveis causas, como a herança de duas décadas de ditadura militar e a influência de nossa imprensa conservadora. A ditadura terá, neste ensaio, amplo papel, já que o atual movimento reacionário se fortalece concomitantemente ao revisionismo do período autoritário e da violência então praticada.




Apesar de o conservadorismo não se resumir apenas à manutenção de privilégios, em países com grandes desigualdades sociais é natural que seja grande o confronto direto entre os que anseiam mudanças e os que as evitam a todo custo. No Brasil, a concentração fundiária e de riqueza, decorrentes de um longo processo de colonização, foram responsáveis, em grande parte, pela caracterização da sociedade como a conhecemos. A despeito das diversas tentativas, a ausência de um processo revolucionário, como ocorrera em praticamente todos os países desenvolvidos, permitiu à elite dirigente total controle dos meios de geração e distribuição de riquezas. A sociedade brasileira às vésperas do indecente dia 31 de março encontrava-se no paroxismo das contradições sociais, com extensa organização dos movimentos populares.

Era necessário parar o “carro revolucionário”, tal qual afirmara o político do Império Bernardo Pereira de Vasconcelos quando do movimento que resultou na abdicação de D. Pedro I em 1831. Com ampla participação civil, congregando de empresários a intelectuais, da Igreja aos partidos conservadores, o golpe militar foi um movimento reacionário por natureza. Contra eles, os estudantes, trabalhadores urbanos e rurais, as Ligas Camponesas, sindicatos e uma miríade de partidos de esquerda. Como é comum nesses momentos, os golpistas elegeram dois inimigos: o comunismo e a corrupção. Pouquíssimo foi feito em relação aos corruptos, importantes aliados dos militares. A possível ameaça ao que os milicos chamavam, hipócrita e ironicamente, de “revolução” deu ensejo, contudo, às arbitrariedades e perseguições. Em pouco tempo, intelectuais, políticos e mesmo a conservadora Igreja católica retiraram o apoio ao regime nefasto.

Se chegamos ao fundo do poço como civilização, o movimento de redemocratização pareceu o mais próximo do que se poderia chamar de um “iluminismo brasileiro”. À exceção daqueles que muito prosperaram durante o regime, os brasileiros como um todo se uniram pelos direitos humanos, pelo voto, contra os militares e seus seguidores. Nesse momento histórico, ainda criança, iniciam as minhas primeiras impressões políticas. Estava claro que passáramos por um período obscuro e que, naquele momento, voltávamos a exercer as prerrogativas mais singelas da cidadania.

Progressivamente, a percepção do ocorrido ia se ampliando. Embora a Carta Cidadã de 1988 tivesse nos livrado de boa parte do “entulho autoritário”, cedo perceberíamos que da ferida ainda jorrava sangue. Os militares voltavam aos quartéis, mas a promiscuidade que existira entre civis e militares em torno do aparato repressor deixara sequelas*. Na polícia mantivemos o pior do regime. A sociedade brasileira seguirá pagando o preço por não condenar os assassinatos e as torturas cometidas pelo governo militar. À imputabilidade de outrora, que contava com a anuência dos presidentes militares, soma-se a atual, legitimada por uma anistia farsesca.

Cresci alimentando um medo em relação à polícia. A violência policial, na medida em que é direcionada à periferia e às favelas, tem sido bem aceita pelo restante da sociedade. Quem perdoa as bárbaras torturas de outrora pode conviver com a arbitrariedade de agora. A aberração é frequente e abertamente defendida por políticos que pregam a “tolerância zero” da polícia, campanha historicamente associada a Paulo Maluf, mas que hoje tem sido utilizada ostensivamente pelos tucanos em SP. 





Passados muitos anos da redemocratização, o radicalismo reacionário vai saindo do armário. Amparados muitas vezes pelo anonimato da internet, defendem a truculência policial e recordam nostalgicamente o período militar. Em São Paulo, tido como um dos estados mais desenvolvidos, o governador Geraldo Alckmin nomeou como comandante da Rota um dos envolvidos no massacre do Carandiru, quando 111 presos foram assassinados. Mais recentemente, podemos recordar a ação policial no Pinheirinho, na Cracolândia, na Marcha da Maconha etc. Talvez o melhor símbolo desse reacionarismo tenha sido o sucesso estrondoso da série de filmes “Tropa de Elite”. Enquanto a Zona Sul carioca aplaudia a “política social” do governo do Rio nas ocupações das favelas, seus filhos assistiam ao Capitão Nascimento torturando e matando bandidos. Ainda que o filme seja de boa qualidade, com interessante descrição da realidade do tráfico de drogas, da corrupção da polícia e do surgimento das milícias, ele não esconde a glamourização do BOPE e seus métodos truculentos, postos como um mal menor pelo diretor.

Sem falar das desprezíveis emissoras de televisão, excessivamente toscas, a imprensa escrita participa, a seu modo, da onda reacionária. Embora a elegância não permita que um jornal como a Folha de S. Paulo defenda a violência, este encontra outros meios, mais silenciosos e sutis. A estigmatização que faz dos movimentos populares como os sem-tetos, MST, sindicatos, que por sua vez não dispõem de equivalente meio de defesa, tem servido como uma branda apologia da repressão policial. Infelizmente, falta-nos um Pasquim, que escancare este triste momento por que passamos.


Para ficarmos na Folha, jornal que acompanho, sua participação engloba ainda o que tenho chamado de revisionismo histórico do período autoritário no país. Mais uma vez, se não o defende diretamente, insiste em apontar os crimes cometidos pela esquerda armada e os planos de revolução socialista que esta possuía. Ademais, em seus editoriais recentes, posicionou-se contra a revisão da Anistia, bem como tece ressalvas à tardia tentativa de recuperar nossa memória do período por meio da Comissão da Verdade. Após chamar o regime militar de "Ditabranda", o jornal paulista parece tentar mostrar, portanto, uma nova história, na qual os militares foram as vítimas e os guerrilheiros, os bandidos.

O reacionarismo é um fenômeno amplo, e poderíamos ter abordado outras faces do assunto, como o preconceito.  Sem querer estender demasiadamente, a ideia foi apenas analisar o crescimento do pensamento reacionário no que ele se relaciona com a violência policial e a ditadura. Dessa forma, o foco foi a crescente aceitação da truculência policial e certa tentativa de revisionismo do período ditatorial, este amparado pela imprensa. O reacionarismo brasileiro é certamente bem mais silencioso que seus congêneres europeus, o que esconde, por outro lado, o seu tamanho e risco. Pelo fato de estar amplamente inserido na sociedade, olvidamos de chamá-lo pelo seu verdadeiro e detestável nome: fascismo.

*Elio Gaspari, em “A Ditadura Escancarada”, analisa detalhadamente os efeitos deletérios da tortura na sociedade, já que, além da afronta aos direitos humanos, contamina a sociedade e as instituições governamentais como um todo.


sexta-feira, 6 de julho de 2012

Ao Paraguai, com carinho


Se revisitarmos as diversas Constituições brasileiras, de 1824 a atual, constataremos quão belas foram na forma e no conteúdo, mas de pouca aplicação ao seu principal interessado: o povo. Na América Latina, a Constituição representa, há anos, mais do que a garantia de direitos e deveres, sem dúvida importante, mas a manutenção de certa “ordem”, de grande interesse de uma minoria dominante. Serviu bem a esse propósito, por vezes interrompido pela ascensão de propostas “esquerdizantes” ou “populistas”. Fernando Lugo cai, sem a ação brutal de Pinochets e Castelos. Para muitos, um exemplo de novos tempos, de uma nova democracia. Ao povo paraguaio, minhas condolências.

domingo, 17 de junho de 2012

Folha e a ditadura

Carta que enviei hoje ao Painel do Leitor da Folha de S. Paulo.


Um estudante alienígena que se baseasse na Folha para conhecer a História brasileira de 1964 a 1985 chegaria à conclusão de que a “revolução de 64” salvou o país de uma esquerda leviana. As informações que o jornal trouxe sobre os justiçamentos dos grupos guerrilheiros de esquerda (Ilustríssima – Traição, vacilação ou discordância, 17/06/2012) são importantes para a historiografia do país, não fossem utilizadas para mistificar a figura da oposição armada. Sob o véu da “pluralidade”, a tentativa recorrente do jornal de equiparar os excessos dos militares às ações da esquerda armada parece preparar os leitores para alguma surpresa vinda da Comissão da Verdade. É conhecida a suspeita de que o jornal teria sido um dos apoiadores civis da Operação Bandeirante (Oban), ao ceder carros de entrega para a utilização dos torturadores. Mais alguns editoriais e especiais sobre a “ditabranda”, nosso estudante alienígena associará a Oban a um mal necessário para o país, o que justificaria, inclusive, a ajuda do jornal aos militares.

terça-feira, 13 de março de 2012

Resgatando nossa vocação agrícola



Após alvoroço dos industriais, a imprensa começou a dar maior importância para a questão da desindustrialização no Brasil. Segundo a imprensa, o governo e a burguesia industrial paulista, existe uma miríade de causas para o fenômeno, como a concorrência chinesa, o “custo Brasil”, a pouca competitividade de nossos produtores. O vilão principal, como todos concordam, é o câmbio valorizado, que torna os produtos nacionais fracamente competitivos em relação aos importados. Um rico vocabulário econômico foi forjado, com expressões como “guerra cambial” e “tsunami de dólares”, que, se corretos na análise, são pouco eficazes na solução do problema. O governo possui diversas ferramentas para limitar a entrada de dólares, o que diminuiria a pressão sobre o câmbio, ou para controlar as importações. Embora a associação câmbio-industrialização não deva ser desprezada, trataremos dela subsidiariamente. Nosso objetivo é relacionar o problema da desindustrialização ao surto agrícola dos últimos dez anos, impulsionado pelos altos preços das commodities, e, sobretudo, à crescente influência dos interesses da oligarquia agrária no Planalto. 

Não é o caso de ignorar a importância da agricultura para o país. É estreita a relação das modernas produções de soja com a indústria de insumos, fertilizantes, maquinário agrícola. Essa contribuição industrial, contudo, não é significativa a ponto de justificar o descompasso da participação agrícola na economia, que além de drenar recursos financeiros, direciona importantes políticas governamentais para esse fim. A votação da nova Legislação Ambiental é um exemplo. Lamentavelmente, rifa-se um imenso potencial econômico e ecológico para favorecer o lobby da oligarquia agropecuária.

Ainda que fujamos um pouco do assunto da desindustrialização, devem-se ressaltar algumas consequências sociais da concentração do latifúndio da soja e do gado. A busca de uma solução para o problema do campo está sendo negligenciada. Enquanto a França busca uma política — diga-se de passagem, legítima— de fortalecimento do pequeno e médio agricultor, que se coaduna com um projeto de descentralização populacional dos centros metropolitanos, o Brasil praticamente enterrou o débil projeto de reforma agrária, encerrando os assentamentos e permitindo a diminuição da agricultura familiar, importantíssima para o abastecimento das cidades, mas incapaz de competir sozinha com a grande propriedade. Há ainda a questão das lutas trabalhistas do trabalhador do campo, raramente sindicalizado e sujeito à ordem patriarcal, e o rastro de sangue da voracidade da expansão da fronteira agropecuária, que atinge pequenos proprietários, comunidades indígenas e seringueiros.

O que é crítico no país é que, tal qual a oligarquia cafeeira da República Velha, surge poderosa a oligarquia do gado e da soja. A influência que esse grupo possui na mídia e no governo explica as inúmeras menções honrosas à moderna agropecuária, sem ser feito correlação com o processo de desindustrialização. O problema do campo é escondido, e os grupos de trabalhadores rurais, como os sem-terras, estigmatizados. É muito questionável, entretanto, uma modernidade que se ampara na derrubada de matas, na depredação do solo e na violência praticada por capangas ou, mais frequentemente, pelas forças policiais do Estado.

MST                     Sebastião Salgado
Infelizmente, economista não vê povo, não vê fome, não vê miséria nem injustiça. Vê país grande, Brasil potência, sexta economia mundial. Realmente, não é possível deixar de verificar os aspectos benéficos da agricultura nos agregados macroeconômicos. Mas, mesmo que a economia fosse algo restrito a eles, estaríamos em uma situação de aparente conforto. Desde inícios do ano 2000, as exportações de minério de ferro e de produtos agrícolas, notadamente a soja, garantiram superávits na balança comercial, que em consequência diminuíram, relativamente, nossa dependência externa e permitiram a acumulação de divisas. O vício do conforto com frequência nos impede de tomar medidas racionais. É a própria exportação exuberante de soja, carne e minério de ferro, além da entrada de capitais especulativos, que sobrevaloriza o câmbio. O problema é que, naturalmente, um câmbio valorizado tenderia a diminuir as exportações e, consequentemente, encontrar um novo equilíbrio, mais desvalorizado. A farra das commodities, contudo, age, juntamente com o tsunami de capitais, na hipervalorização do câmbio. Mecanismos do governo que busquem a desvalorização da moeda nacional devem se cautelosos, pois isso representaria um incentivo ainda maior às inversões na agricultura. Independentemente do câmbio, tem-se que desestimular o investimento no agribusiness.

Apesar de o equilíbrio no Balanço de Pagamentos ser algo desejável, o custo é alto. Essas benesses da agricultura têm, no entanto, direcionado as escolhas do governo. Em detrimento de uma política industrializante, as decisões tomadas fortalecem a agricultura e a elite agrária. Nossa “vocação agrícola”, recentemente desenterrada, levou o governo aos principais fóruns internacionais para defender a abertura dos mercados agrícolas europeu e americano. Em troca dessa vantagem, sem dúvida importante para os países agrícolas de baixo desenvolvimento, oferecemos nosso mercado interno para os manufaturados estrangeiros. A classe média, já deslumbrada com carros e equipamentos importados, explodiria em êxtase. Felizmente, para nossa indústria, os europeus não abrem mão de sua política agrícola, que consideram importante para a segurança alimentar e desenvolvimento social.  

A dicotomia industrialização-agricultura não é recente. A Revolução de 1930, se não trouxe transformações sociais, teve um impacto fulminante nesse ponto, já que representou o abandono da “vocação agrária” por uma política industrializante. O governo, naquele momento, optou por uma política econômica que favorecesse o país como um todo, finalizando um período em que os interesses da elite oligárquica prevaleciam. Para se ter uma ideia, o peso do café nas exportações caiu para 32%, em 1940, ante 70%, em 1930.

Ainda que haja inúmeras diferenças entre os cafezais de outrora e o modo de produção utilizado atualmente, observamos a volta triunfante da oligarquia rural nas esferas de poder e na imprensa. Os impactos da agropecuária no processo de desindustrialização estão sendo, infelizmente, negligenciados, haja vista o silêncio dos meios de comunicação e dos economistas do governo. Se o sério problema da desindustrialização, um atraso no desenvolvimento do país, conta com outros aspectos relevantes como a China e a entrada de dólares, o incentivo dado à expansão agrícola tem participação importante, com o agravante de comprometer o interesse coletivo em áreas estratégicas (social, política, ambiental), para favorecer interesses eminentemente privados e oligárquicos.  

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Felizes Juntos - Wong Kar-Wai

Não posso reclamar dos últimos filmes que tenho assistido. As exceções não são suficientes para macular o repertório. Confesso que saber selecionar também é uma arte, modéstia a parte.
Eis que, última sexta-feira, a patroa chega em casa com pouco mais de 10 títulos de uma locadora que frequentamos. Seu sorrisinho maroto não evitou o meu “Jesus Cristo, sua louca”. Acho que uma das coisas mais sábias, dentro do processo de compreensão do universo feminino, é não tentar compreender todo o universo feminino. Os efeitos colaterais são maiores do que os benefícios, acredite. Pedi para ver o acervo. Realmente, a pródiga seleção era além de animadora. Ainda que metade dos filmes jogasse na retranca (Bergman, Fassbinder, Antonioni, Tarkovski, talvez Lynch), havia algumas escolhas mais arriscadas.
Começamos, na mesma noite, por Felizes Juntos, do Wong Kar-Wai, uma indicação do rapaz da locadora. Apesar de já conhecer o diretor, por conta de seu filme “2046”, desconfiei. Nunca aceite uma indicação do cara da locadora, erro clássico, mirim. Às vezes, felizmente, nos enganamos: grande filme! Pra não contar a história toda, o filme aborda a relação conflituosa de um casal homossexual de chineses em Buenos Aires. Ressalvando a representação um pouco estereotipada dos portenhos (ninguém é perfeito), o filme dá show de sensibilidade e beleza. O zelo fotográfico é quase irritante e, entre tangos e milongas, duas composições do Zappa, a magistral “Chunga’s Revenge” e “I have been in you”. Desaconselhável a homófobos, declarados ou enrustidos.

domingo, 29 de janeiro de 2012

O negro e o preconceito


“But when you have to wait 30 years to get one piece played —what do you think happens to a composer who is sincere and loves to write and has to wait 30 years to have someone play a piece of his music. (…) Had I been born in a different country or had I been born white, I am sure I would have expressed my ideas long ago.”  
Charles Mingus, sobre a música e poesia The Chill of Death (Let my children hear music)

Impossível ler essa forte declaração do Mingus e não fazer uma analogia com a crítica situação do preconceito de cor no Brasil. Há diferenças marcantes em relação ao preconceito estadunidense, principalmente na maneira como ocorreu todo o processo de libertação dos escravos e a posterior garantia dos direitos civis. O fim da escravidão, nos EUA, ocorreu após uma guerra fratricida que dizimou boa parte de sua população e embora existissem valores morais contra prática degradante, os motivos econômicos e políticos foram muito mais significativos. No Brasil, a despeito das lutas quilombolas e de toda sorte de violência, a libertação foi relativamente pacífica. Tanto lá como cá, a libertação não significou inclusão e muito menos o fim do preconceito. Mas, neste ponto, talvez encontremos um aspecto significativo que diferencie o preconceito no Brasil e nos EUA.

No fim do século XIX e início do XX, as teorias racistas, supostamente científicas, estavam em voga em todo o mundo. No Brasil, a elite associava a imigração, não apenas a uma necessidade premente de mão de obra para as lavouras de café, mas, sobretudo, à promoção do embranquecimento da população, medida considerada condicionante para o progresso do país. Alijado dos melhores empregos e carente de condições materiais para o desenvolvimento, o negro vai ser significativamente marginalizado. Foi emblemática a discriminação feita nos clubes de futebol, recém-formados, os quais impediam a participação do contingente negro em seus quadros. O tratamento dado pelo próprio governo foi, contudo, muito mais dramático, como o lamentável desfecho do episódio dos marinheiros negros contra os maus-tratos da oficialidade branca, na Revolta da Chibata.

O governo Vargas (1930-1945) vai ser importante para uma relativa mudança na análise da sociedade brasileira. As feições corporativistas que adquire o Estado brasileiro, influenciado pelos regimes fascistas europeus, serão evidentes nas áreas políticas e sociais, ao buscarem eliminar diversas formas de conflito no seio da sociedade. Além de abolir os partidos políticos, fonte de embate no campo político, a relação patrão-empregado ficará a cargo do governo, responsável tanto pelo estabelecimento do salário mínimo (que na prática agradou os empresários) como pela legislação trabalhista. O sindicalista “pelego” teve uma função importante, não mais como interlocutor do trabalhador, mas realizando função equivalente ao que o nome “pelego” sugere nas relações entre sela e cavalo.

É no campo cultural do Governo Vargas que nossa argumentação busca suas bases. Apoiados pelo governo, no bojo do movimento modernista, intelectuais e artistas vão reconstruir o ideário da nacionalidade brasileira. Leituras originais foram feitas da história do país, mas principalmente da formação do povo brasileiro. A miscigenação, outrora negativa, passa a ser supervalorizada, como uma característica única e extremamente vantajosa do povo autóctone. Ser mestiço deixa de ser negativo, mas algo a ser comemorado. O negro, nessa história, participa junto com as outras matrizes, a portuguesa e a indígena, formando uma cultura miscigenada, que não pertenceria a nenhuma matriz individualmente, mas a uma combinação de todas. Gilberto Freyre, o principal intérprete desta corrente, resgatou a cultura negra e as relações entre sinhô e escravo, no clássico Casa-Grande & Senzala. Sem descurar completamente da violência que existia nesse relacionamento, propôs que a sociedade escravocrata dos engenhos pernambucanos possuía contrapontos em relação à equivalente das plantações de algodão dos EUA. Aqui, devido principalmente à ausência de veleidades de raça e à miscibilidade do português, haveria uma proximidade maior entre casa-grande e senzala, responsável, segundo ele, pela aceitação do negro no período pós-escravocrata. Estava pronta a ideia de democracia racial, implícita em sua obra.

A ilusão de que o negro brasileiro estava livre do preconceito teve efeitos perversos. Tal mito foi responsável por manter o negro marginalizado, com poucas condições de reverter seu quadro socioeconômico. Além de absolver o Estado e a elite de qualquer responsabilização, a ideia de uma sociedade miscigenada e sem preconceitos deslegitimou qualquer tentativa de luta pelos direitos civis e sociais, cuja garantia lhes era, constantemente, solapada. O preconceito de cor permanece, no Brasil, forte, mas, diferentemente do que ocorre nos EUA, é amiúde velado. Qualquer indicador social (educação, população carcerária, mortos pela polícia, população miserável, salário) escancara, entretanto, a tamanha opressão a que está sujeito o negro; injustiças que não cessarão sem medidas contundentes.

Ainda assim, muitos insistem que não há preconceito no Brasil, preferindo perpetuar o mito freyriano. O efeito nefasto dessa afirmação, que insinua haver equidade de condições entre branco e negro, algo em si preconceituoso, é a manutenção do status quo na sociedade brasileira, tão caro para alguns. Em vez de encarar que vivemos em uma sociedade extremamente desigual e preconceituosa, convenientemente, ignoramos a realidade. Partindo da premissa da democracia racial ou mesmo de outras falácias, medidas afirmativas e urgentes seriam tentativas de dividir o Brasil em raças. O preconceito, mascarado, fortalece-se, corroendo as poucas possibilidades de mobilidade social do negro.

Charles Mingus disse que talvez tivesse sorte diferente em outro país. Não no Brasil.

Dedicado à Nazareth Fonseca.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Pinheirinho e a luta pela terra




foto: Roosevelt Cassio - Reuters
Ontem, a partir das 6 horas da manhã, forte aparato policial iniciou a reintegração de posse do bairro Pinheirinho em São José dos Campos, área ocupada desde 2004 por quase duas mil famílias. A ação policial aparentemente cumpriu o desejo da prefeitura, liberando o terreno e deslocando as famílias para um galpão improvisado pela prefeitura. Há muitos interesses em jogo, políticos e econômicos. Os habitantes do Pinheirinho, abandonados durante oito anos pela prefeitura joseense, período que quase coincide com a gestão do prefeito Eduardo Cury (PSDB), representaram, além da sua luta por moradia, uma luta maior, do povo brasileiro, contra o poder do capital e da propriedade.


foto: Fernando Donasci - Folhapres
A primeira abordagem do problema não poderia deixar de ser a jurídica. Isso porque a reintegração foi precedida pelo embate entre a justiça federal e estadual, inconcluso mesmo durante a ação policial, ainda em curso. O argumento principal da justiça estadual era o de que a desapropriação deveria ser realizada para preservar o sagrado direito à propriedade. Os possíveis contra-argumentos são numerosos. A Constituição brasileira guarda com carinho diversos direitos sociais, como os direitos à moradia, à dignidade humana, à educação, à vida. Se nenhum direito constitucional é absoluto, devendo ser analisado o caso concreto, ponderando os diversos direitos, o direito tratado talvez seja o menos absoluto possível, já que depende do cumprimento da função social da propriedade. Ora, o terreno ocupado é propriedade de uma empresa falida de Naji Nahas, um dos investigados da Operação Satiagraha, anulada e arquivada pelo STJ. Ainda que se argumentasse a favor da índole do empresário, uma vez que angariou o apoio judiciário em sua absolvição, não há como defender o uso que faz do terreno, por anos abandonado e com dívida de 15 milhões com a prefeitura (CF, art. 182, § 4º).

foto: Roosevelt Cassio - Reuters
Não se trata de buscar na Constituição a solução para o imbróglio. Além de ingênuo, seria desconsiderar as verdadeiras lutas que ocorrem na sociedade. No Brasil, a questão da propriedade não deve ser analisada sem se realizar uma abordagem histórica. A escravidão e as doações de sesmarias foram suficientes, durante mais de três séculos, para garantir o controle socioeconômico da população. Em 1850, concomitantemente ao fim do tráfico de escravos, os dirigentes do país, preocupados com o acesso à terra por parte dos trabalhadores (não escravos e imigrantes), decretam a Lei de Terras, que impedia a aquisição de terras devolutas, senão pela compra. Os últimos momentos do governo João Goulart são ainda mais elucidativos para perceber que, no Brasil, a propriedade é um direito sagrado para a minoria que a possui. Longe de ser revolucionária, a Reforma Agrária proposta por Celso Furtado, ministro do Planejamento, era uma medida muito mais econômica do que social, já que deveria elevar a produção de alimentos básicos (controlando a inflação) e aumentar o mercado consumidor interno (impulsionando o modelo de desenvolvimento por substituição de importações). Infelizmente, os reformistas não lograram sequer modificar a Constituição quanto à forma de indenizar a propriedade improdutiva, modificando o estabelecido pagamento prévio para uma indenização gradual com títulos do governo. Vinte anos de arbitrariedade militar foram iniciados pelo apoio da elite brasileira à defesa da propriedade e do status quo, motivo pelo qual a ruptura democrática é conhecida como golpe civil-militar.  

A análise socioeconômica seria suficiente para explicar o drama dos moradores do Pinheirinho e o tamanho de sua luta. Ela é, contudo, incompleta. Isso porque, a despeito da intransigência do prefeito Eduardo Cury e da justiça estadual (juíza Márcia Loureiro), que insistiram na solução policial, houve disposição do governo federal na regularização do terreno, cujo primeiro passo seria o cadastramento da Ocupação, pela prefeitura, no projeto Cidade Legal. As eleições municipais que ocorrerão no final deste ano tiveram um peso significativo, já que os partidos políticos do governo federal e municipal disputam a prefeitura da cidade. O interesse político na ação do prefeito Eduardo Cury (PSDB), explica a solução policial, atropelando a orientação da justiça federal e a intenção do governo federal de solucionar o problema de moradia no local.
Charge do cartunista Latuff representando o prefeito Cury, o governador Alckmin,   
o comandante da PM e a juíza estadual Márcia Loureiro
A atitude do prefeito Cury, ao mobilizar quase 2000 policiais contra o povo, sobrepondo interesses econômicos e políticos aos direitos sociais, além de extremamente covarde, é canalha, na acepção mais pejorativa que a palavra pode comportar. Os moradores do Pinheirinho não são mártires, porque há ainda um longo caminho para eles. Toda a população brasileira deve apoiar essa luta, como a mais legítima que pode existir em um país onde a concentração de terra e de renda apresenta índices tão desonestos. Apoiar a repressão é ser cúmplice com a manutenção da injustiça e dos mecanismos de controle do povo pela elite privilegiada pelo capital, mecanismos bem representados pelo que atualmente se denomina Estado Democrático de Direito.