sábado, 8 de junho de 2013

O negro e o preconceito (parte 2)

Sexta-feira à noite, as sinapses nervosas sentindo o peso de uma semana longa, resolvi assistir ao último filme do Tarantino, Django. Não falo isso para menosprezar o diretor, que por sinal aprecio. Considero-o uma feliz exceção no universo de filmes de Hollywood, seara em que a previsibilidade é regra. O curioso é que, apesar disso, o cinema do Tarantino não chega a se contrapor à Hollywood, aproximando-o, por exemplo, dos euro-asiáticos. Muito pelo contrário, Tarantino consegue justamente tirar proveito do maniqueísmo e da violência hollywoodianos, fazendo uso da sátira e do exagero. Unido a isso, minha curiosidade aumentou com uma entrevista que li do diretor Spike Lee, em que, a despeito de não ter visto o filme, criticava a maneira com que o colega tratou de assunto tão sério.

Embora eu entenda, confesso que discordo do diretor de Faça a coisa certa. É possível abordar temas polêmicos de diferentes maneiras; pior é sacralizá-los. Acho que, de certa forma, Tarantino atingiu o seu objetivo. Se a intenção era escancarar a brutalidade do sistema escravista e a estupidez da sociedade sulista, conseguiu. Como fez com os nazistas, em Bastardos Inglórios, faz uma espécie de julgamento tardio dos racistas, impunes pela injusta anistia do tempo.



Até aí nenhuma novidade, acho que era esperado por todos. O problema é outro. Talvez por desconhecimento do assunto, o diretor conseguiu fortalecer um dos piores estereótipos da escravidão: o do escravo manso e subserviente. Não há uma só cena em que o negro lute contra sua atroz situação. Mesmo humilhado e diminuído de diversas formas (a cena da rinha entre escravos é visceral), o negro é impassível, quase acomodado com seu trágico destino. Eu poderia enumerar quinhentas cenas em que os personagens negros demonstram apenas medo e fraqueza.

Não há dúvidas de que a brutalidade extrema foi, muitas vezes, eficaz. Mas não impediu, de maneira alguma, que o negro lutasse, tentasse a fuga ou vivesse em quilombos, mesmo que isso significasse a morte. Aliás, não foram poucos os que a elegeram como saída. Se se considera que o período retratado no filme é antecedente à guerra civil e à abolição, percebe-se a terrível inverossimilhança do filme. Não é um erro ingênuo estigmatizar o negro como alguém sem ímpeto para a luta. Pelo contrário, Tarantino aproximou-se dos que não enxergam a existência e a legitimidade de uma luta que se prolonga por nossos dias.
Poder-se-ia argumentar que o personagem principal, o Django, representaria uma figura metafórica da luta dos escravos. A hipótese, entretanto, não se sustenta. Mesmo matando muitos brancos sulistas, o faz mais por vingança do que por liberdade. De qualquer forma, como único negro que não se curva, o filme eleva-o ao patamar de mito, de exceção. No final do filme, o próprio Django repete o discurso racista que ouvira do dono da plantation de algodão, o de que ele seria um negro em 10 mil.



Essa visão da realidade do negro pré e pós-escravidão não é um mérito da ignorância do Tarantino. No Brasil, por muito tempo sustentou-se a ideia de que a liberdade do negro estava condicionada à vontade do branco. Assim, exaltaram-se importantes abolicionistas brancos como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, mas pouco crédito deu-se a José do Patrocínio ou Luiz Gama. Isso sem falar dos milhares de negros que compuseram centenas de quilombos pelo país, heroicos combatentes. Olvida-se do sangue derramado em Palmares, na Conjuração Baiana ou na Revolta dos Malês, embora lembre-se da assinatura da princesa Isabel. Decretada a abolição, o discurso modifica-se, mas não a intenção. Deixados a deus-dará, a desgraça dos negros foi constantemente ignorada, sem um tratamento específico. Fortaleceu-se, todavia, o falacioso discurso da democracia racial, de um país sem preconceito. A miséria seria, portanto, responsabilidade do próprio negro. De certa forma, a relutância em aceitar as cotas raciais são exemplos desse persistente preconceito velado.


Incrível como o preconceito pode ser tacanho. Em pesquisa1 realizada no Brasil, em 2003, 96% dos entrevistados afirmaram que não possuíam preconceito. Ao responderem outras perguntas, no entanto, apenas 26% não manifestaram algum tipo de preconceito. O filme do Tarantino carrega esse tipo de preconceito, provavelmente inconsciente, fruto de uma grande ignorância que está presente em toda a sociedade. Uma pena, pois o filme tem bons momentos, bons diálogos. Ficou condenado. Agora, chego a entender um pouco melhor o Spike Lee. Ao tentar fazer uma leitura crítica da escravidão, Tarantino fez um filme paradoxal, com um infeliz viés racista. 

1- Racismo no Brasil, percepções da discriminação e do preconceito racial no século XXI; SANTOS, Gevanilda; SILVA, Maria Palmira (organizadoras).

Mais um agente da USAID no Brasil

Acho que o momento é incrivelmente oportuno para assistir ao filme “Estado de Sítio”, do grego Costa-Gavras. Resumidamente, o filme descreve o sequestro de Dan Mitrioni, agente da USAID em plena ditadura uruguaia. Sob a fachada de uma organização civil, no bojo da Aliança para o Progresso, a USAID cooperou com policiais e militares latino-americanos, antes e depois dos diversos golpes militares. A preocupação com a ordem ensejou a modernização do aparato repressor dos países subdesenvolvidos. Além de interferir financeiramente nas eleições e de fornecer armas e equipamentos, os estadunidenses ensinaram-nos eficientes técnicas de tortura.



A pertinência do filme está na indicação da nova embaixadora estadunidense no Brasil, Liliana Ayalde, também funcionária da USAID. Não é pouca coisa. Para os mais esquecidos, vale lembrar que um dos principais articuladores do golpe militar de 1964 foi o embaixador estadunidense Lincoln Gordon. A conjuntura geopolítica é outra, mas os interesses permanecem. 

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/112717-retrospecto-de-agencia-inclui-acoes-polemicas.shtml