Sexta-feira à noite, as sinapses
nervosas sentindo o peso de uma semana longa, resolvi assistir ao último filme
do Tarantino, Django. Não falo isso para menosprezar o diretor, que por sinal
aprecio. Considero-o uma feliz exceção no universo de filmes de Hollywood,
seara em que a previsibilidade é regra. O curioso é que, apesar disso, o cinema
do Tarantino não chega a se contrapor à Hollywood, aproximando-o, por exemplo, dos
euro-asiáticos. Muito pelo contrário, Tarantino consegue justamente tirar
proveito do maniqueísmo e da violência hollywoodianos, fazendo uso da sátira e
do exagero. Unido a isso, minha curiosidade aumentou com uma entrevista que li
do diretor Spike Lee, em que, a despeito de não ter visto o filme, criticava a
maneira com que o colega tratou de assunto tão sério.
Embora eu entenda, confesso que
discordo do diretor de Faça a coisa
certa. É possível abordar temas polêmicos de diferentes maneiras; pior é
sacralizá-los. Acho que, de certa forma, Tarantino atingiu o seu objetivo. Se a
intenção era escancarar a brutalidade do sistema escravista e a estupidez da
sociedade sulista, conseguiu. Como fez com os nazistas, em Bastardos Inglórios, faz uma espécie de julgamento tardio dos
racistas, impunes pela injusta anistia do tempo.
Até aí nenhuma novidade, acho que
era esperado por todos. O problema é outro. Talvez por desconhecimento do
assunto, o diretor conseguiu fortalecer um dos piores estereótipos da
escravidão: o do escravo manso e subserviente. Não há uma só cena em que o
negro lute contra sua atroz situação. Mesmo humilhado e diminuído de diversas
formas (a cena da rinha entre escravos é visceral), o negro é impassível, quase
acomodado com seu trágico destino. Eu poderia enumerar quinhentas cenas em que os
personagens negros demonstram apenas medo e fraqueza.
Não há dúvidas de que a brutalidade
extrema foi, muitas vezes, eficaz. Mas não impediu, de maneira alguma, que o
negro lutasse, tentasse a fuga ou vivesse em quilombos, mesmo que isso significasse
a morte. Aliás, não foram poucos os que a elegeram como saída. Se se considera
que o período retratado no filme é antecedente à guerra civil e à abolição,
percebe-se a terrível inverossimilhança do filme. Não é um erro ingênuo
estigmatizar o negro como alguém sem ímpeto para a luta. Pelo contrário,
Tarantino aproximou-se dos que não enxergam a existência e a legitimidade de
uma luta que se prolonga por nossos dias.
Poder-se-ia argumentar que o
personagem principal, o Django, representaria uma figura metafórica da luta dos
escravos. A hipótese, entretanto, não se sustenta. Mesmo matando muitos brancos
sulistas, o faz mais por vingança do que por liberdade. De qualquer forma, como
único negro que não se curva, o filme eleva-o ao patamar de mito, de exceção.
No final do filme, o próprio Django repete o discurso racista que ouvira do
dono da plantation de algodão, o de
que ele seria um negro em 10 mil.
Essa visão da realidade do negro
pré e pós-escravidão não é um mérito da ignorância do Tarantino. No Brasil, por
muito tempo sustentou-se a ideia de que a liberdade do negro estava
condicionada à vontade do branco. Assim, exaltaram-se importantes abolicionistas
brancos como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, mas pouco crédito deu-se a José do
Patrocínio ou Luiz Gama. Isso sem falar dos milhares de negros que compuseram
centenas de quilombos pelo país, heroicos combatentes. Olvida-se do sangue
derramado em Palmares, na Conjuração Baiana ou na Revolta dos Malês, embora
lembre-se da assinatura da princesa Isabel. Decretada a abolição, o discurso
modifica-se, mas não a intenção. Deixados a deus-dará, a desgraça dos negros
foi constantemente ignorada, sem um tratamento específico. Fortaleceu-se,
todavia, o falacioso discurso da democracia racial, de um país sem preconceito.
A miséria seria, portanto, responsabilidade do próprio negro. De certa forma, a
relutância em aceitar as cotas raciais são exemplos desse persistente preconceito
velado.
Incrível como o preconceito pode
ser tacanho. Em pesquisa1 realizada no Brasil, em 2003, 96% dos
entrevistados afirmaram que não possuíam preconceito. Ao responderem outras
perguntas, no entanto, apenas 26% não manifestaram algum tipo de preconceito. O
filme do Tarantino carrega esse tipo de preconceito, provavelmente inconsciente,
fruto de uma grande ignorância que está presente em toda a sociedade. Uma pena,
pois o filme tem bons momentos, bons diálogos. Ficou condenado. Agora, chego a
entender um pouco melhor o Spike Lee. Ao tentar fazer uma leitura crítica da
escravidão, Tarantino fez um filme paradoxal, com um infeliz viés racista.
1- Racismo no Brasil, percepções da discriminação e do preconceito racial no século XXI; SANTOS, Gevanilda; SILVA, Maria Palmira (organizadoras).