domingo, 16 de setembro de 2012

Guerra Santa?


O mundo está horrorizado com a violência praticada por muçulmanos contra repartições diplomáticas estadunidenses ao redor do planeta. A lista de países inclui Nigéria, Iêmen, Egito, Tunísia, Líbano, Israel, Palestina Síria, Irã, Indonésia, Iraque, Sudão e Afeganistão. Impossível não considerar o caráter religioso do movimento, já que a onda de revolta foi desencadeada pela divulgação de um filme em que o profeta Maomé e sua religião são ridicularizados. Culpar o fundamentalismo religioso, contudo, simplifica a análise dos acontecimentos: radicais judaico-cristãos de um lado contra os já estigmatizados radicais muçulmanos, de outro. A explicação não é, entretanto, só superficial mas ingênua. Há de se considerar, ao menos subsidiariamente, os aspectos políticos envolvidos, que vão da Primavera Árabe à política externa do Departamento de Estado Americano para o Oriente Médio.




No fabuloso “O Grande Inquisidor”, conto dentro do clássico “Irmãos Karamazov”, Dostoievski descreve as especificidades da dominação exercida pela Igreja Católica. Após encarcerar Jesus, o inquisidor espanhol inicia um monólogo em que destrói os principais pilares da Igreja. Não é a fé que transforma o homem em rebanho, mas o medo, a fuga de uma realidade inconveniente e, especialmente, a rejeição da liberdade que supostamente fora ofertada pelo Criador. O livre-arbítrio seria, desse modo, um fardo demasiado pesado, sabiamente apropriado pela Igreja, por meio de uma miríade de construções em torno do medo. É em um misto de submissão e ignorância que o homem eventualmente encontra a paz.

Em que pese a importância da devoção religiosa como combustível para a intolerância e violência, é possível ir além da angústia espiritual descrita pelo mestre russo, sobretudo se desejarmos fazer um paralelo político com os acontecimentos recentes. Neste caso, convém analisarmos, rapidamente, a relação da Igreja com a constituição de uma identidade popular forte, aspecto caro a imperadores e a Estados em formação.  Não faltaram exemplos na história. Constantino, fundador da Igreja Católica, embora ele próprio cresse em outros deuses, foi sábio em perceber outras formas dominação além das batalhas. Mesmo o secular e iluminista Robespierre, após condenar e perseguir membros do clero católico, um dos pilares do Antigo Regime, forjou o culto ao Santo Marat, o jornalista incendiário da Revolução Francesa.

Infelizmente, a religião continua a ter papel de destaque na reafirmação dos nacionalismos. O caso mais bem acabado dessa relação encontra-se em Israel, onde nacionalidade e judaísmo se confundem, não só em despautérios sionistas, mas de maneira oficial, como demonstra a exigência do registro do cidadão israelense como judeu1.

Além de Israel, há outros Estados que perpassam por um lento e sofrido processo de consolidação nacional, notadamente os países árabes. Do imperialismo do século XIX ao processo de descolonização de meados do século XX, tais países ficaram sujeitos às disputas políticas das grandes potências mundiais. A Segunda Revolução Industrial incorporou ainda outro elemento explosivo: o petróleo. Verificando atentamente, percebe-se quão recente foram as “independências” da maioria desses Estados. É o caso, por exemplo, da Revolução Político-Religiosa Iraniana (1979), decorrência direta de décadas de “ocidentalização”  forçada, por meio do regime títere do xá Reza Pahlevi, que terminou por criar o regime teocrático atual. A ameaça recente de invasão militar, consubstanciada pela retórica agressiva de EUA e Israel, só garante a continuidade do autoritarismo religioso no Irã.

No território sitiado de Gaza, o partido Hamas, visando ao fortalecimento do nacionalismo palestino, tem acirrado o fundamentalismo religioso, evidente na imposição de certos costumes, como o uso do véu hijab pelas mulheres. O neo-apartheid imposto por Israel aos habitantes palestinos, além dos assassinatos e bombardeios, sem dúvida contribui para a identificação religiosa à causa territorial palestina. 

Poderíamos ainda falar do Afeganistão (1979-89; 2001), Paquistão, Líbano (1982, 2006), Líbia, Etiópia, Iraque (2003), mas não é o objetivo principal desta exposição. Importante, sim, é perceber a existência de uma hostilidade antiga direcionada pelos Estados Unidos a esses países. As efêmeras aproximações não foram suficientes para encobrir o objetivo único e irrestrito do Departamento de Estado americano: a consecução de seus próprios interesses.

Se o motivo religioso não pode, portanto, ser analisado isoladamente dos aspectos políticos, por que motivo ele é apresentado tão frequentemente como a causa principal dos distúrbios? É bem evidente que, retirando a legitimidade das manifestações, anula-se o efeito político almejado pelos revoltosos. Para Edward Said, autor de “Orientalismo”, não é apenas a imensa ignorância que move a caracterização estereotipada da cultura árabe ou islâmica. O etnocentrismo ocidental é favorecido quando se consegue distinguir com facilidade o outro; a civilização da barbárie. A representação da luta política em curso por seu aspecto estritamente religioso e fundamentalista faz parte de um projeto político mais amplo, ardilosa e eficientemente dissimulado.

É impossível precisar com exatidão a parte das manifestações que cabe ao fanatismo. Sem negá-la, ressaltamos o entrelaçamento da questão religiosa ao fortalecimento da nacionalidade, algo ambicionado por muitos Estados em processo de consolidação. O fato de as revoltas recentes estarem ocorrendo em países que passaram pela Primavera Árabe só fortalece esse argumento da construção da identidade. Dentro desse contexto de busca de autonomia e mesmo de sobrevivência, não é difícil eleger um inimigo do nacionalismo árabe. Após a queda dos grandes impérios europeus, a consolidação dos Estados árabes encontra na hostilidade bélica, política e cultural dos Estados Unidos a sua principal oposição e, logo, o alvo preferido dos ataques recentes.