O conflito entre o Estado de Israel
e o Povo Palestino ganhou contornos mais violentos recentemente. Teme-se que a
escalada de violência repita os eventos de 2008, em que ocorreu o massacre de
1400 palestinos e a destruição de Gaza. Além das humilhações diárias a que os
palestinos estão sujeitos, o uso desproporcional da força, com o assassinato de mulheres e crianças, envergonha o mundo.
Custo a me acostumar com a
facilidade com que o ser humano realiza a guerra. Por mais que se tornem
frequentes, a ponto de alguns noticiários ignorarem os conflitos geopoliticamente
menos relevantes, a insignificância que a vida humana adquire nesses momentos é
inquietante. Da visão humanista, contudo, é preciso partir para a analítica, uma vez que temos interesse em compreender esse processo belicoso. Daí que uma divisão precisa ser feita entre as clássicas guerras entre Estados e os conflitos não convencionais, intraestatais. A ampla variedade das lutas internas exige um recorte conveniente. Por isso, uma particular atenção será dada às lutas populares que buscam a emancipação política, das quais faz parte o caso palestino. A comparação entre os movimentos de independência e as guerras tradicionais será a ferramenta por meio da qual a permanente guerra palestino-israelense será enquadrada.
"A guerra é a
continuação da política por outros meios".
A célebre conceituação de Carl
von Clausewitz evidencia o principal objetivo da guerra entre
Estados: o interesse nacional. Para a sua consecução, a Realpolitik dos Estados modernos preocupa-se com objetivos
estratégicos, econômicos ou territoriais. Questões ideológicas ou mesmo
religiosas deixaram de pautar a ação estatal ainda no século XVII, finda a
Guerra dos 30 anos (o tratado de Westfalia de 1648 é considerado um marco
histórico). Uma característica é, contudo, comum a conflitos antigos e
recentes, responsável em grande parte por sua brutalidade: ao se
buscar os interesses nacionais, não se medem valores morais, mas ações
pragmáticas e estratégicas. A sobrevivência de um Estado depende do poder que
este detém no cenário internacional, objetivo pelo qual se justificam a invasão
e o extermínio.
Os movimentos de independência e
revolucionários são distintos da guerra interestatal por alguns motivos. Talvez
o principal seja o caráter popular que os motiva. Enquanto as guerras
convencionais são determinadas e dirigidas por agentes estatais, frequentemente
contrariando a vontade da maioria (Vietnã, por exemplo), as lutas pela
emancipação possuem uma ampla sustentação popular, ainda que comandadas por uma
elite política ou econômica, como acontece amiúde. O poder, neste caso, não representa
um fim em si mesmo, mas condição indispensável para a mudança da ordem
opressora. Os valores morais e ideológicos não são apenas considerados, mas
exaltados; são princípios que fundamentam a luta por uma nova sociedade. Assim ocorreram
a Revolução Francesa, a Independência Americana, a Revolução Russa, a Revolução
Cubana, a descolonização afro-asiática e tantas outras. E valores como a
Liberdade, Igualdade, Independência e Justiça prosperaram...
Perdoem-me os reacionários, mas
não nego certo apreço por esses movimentos. Embora considere as reformas o
primeiro caminho, a mudança, muitas vezes urgente, dificilmente virá por meios
pacíficos. Os lacaios que detêm poder e privilégios não largarão o osso,
acredite. As lutas revolucionárias embasadas na soberania popular possuem,
portanto, uma legitimidade nata, já reconhecida pelos sábios iluministas: “o governo tirânico rompe o contrato social,
permitindo ao povo o uso de seu direito à rebelião”.
Não é preciso ir muito longe para
constatar o esforço reacionário para retirar a legitimidade da luta popular.
Certamente simbólico, além de eficiente, foi tachar de “terrorismo” o principal
meio pelo qual agem os movimentos populares. Junto com o terrorismo, começa-se
a construir um discurso para estigmatizá-lo, associá-lo ao fanatismo, à
brutalidade e à barbárie. Não pretendo defender qualquer tipo ação armada; a
generalização que é, convenientemente, dada ao termo “terrorismo” dificulta uma
diferenciação entre a luta popular e ações paramilitares cometidas por Estados
ou grupos políticos (Talibã, Líbia, Al Qaeda).
Os palestinos utilizam um número
bem variado de meios de luta. Desde os esforços diplomáticos para receber o
reconhecimento de organismos internacionais (ONU, UNESCO...) e de Estados,
passando pelas manifestações de rua, pela Intifada, pela organização política
e, por fim, pelas lutas armadas. Os resultados não têm sido, contudo, alentadores.
As poucas tentativas de paz foram superadas pelo regime de extrema-direita
do Likud. A fragilidade da democracia de Israel é evidente na manipulação
que a sociedade "civil" israelense sofre de seus líderes. Os ataques à Gaza reforçam o discurso
de força, de amplo efeito sobre um povo completamente militarizado. Sem
nenhuma legitimidade para manutenção da ocupação dos territórios palestinos, já
que fere princípios elementares da dignidade humana, Israel conta com o uso
bruto da força e do discurso ideológico. Se a primeira é cruel e assassina, a
segunda pauta-se no preconceito e na mentira. Isso porque sua luta baseia-se na opressão, no assassinato, na humilhação, atropelando
valores como liberdade, direitos humanos, solidariedade, igualdade. Os
estadistas e ideólogos sionistas apoiam-se em “princípios” religiosos e racistas
para justificar o indefensável. São, na verdade, subterfúgios retóricos, pois
Israel move uma guerra de conquista, em que valores morais são desprezados.
Do lado palestino, não se trata (ainda)
de um Estado, mas de um povo que luta pela liberdade. Amparam-se no legítimo direito
à rebelião, objetivando o exercício inalienável da soberania popular. Foram aviltados
com o despojo de suas terras, processo ainda em curso. Os diferentes partidos
políticos mostram as várias faces da resistência, a maioria pacífica. Questiono
o uso da força por dois motivos: seu efeito concreto é desprezível e seu impacto
na opinião pública internacional, negativo. O caminho deve ser a mobilização
internacional pela causa palestina, como foi feito na África do Sul, durante o apartheid. É uma luta longa e muitas
vezes ingrata, mas onde será possível colher algum resultado.
O fato é que, embora as ações
armadas dos palestinos sejam ineficazes, não se pode comparar a luta pela
liberdade com a luta pela conquista. Israel e palestinos possuem objetivos
diferentes, desonesta e convenientemente confundidos pela imprensa. O povo
palestino merece por fim à opressão e possui, portanto, legitimidade para
prosseguir sua luta com todos os meios disponíveis.
“E dificilmente é preciso mais do que um dia em Gaza para sentir como é
tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo, onde cerca de 1,5
milhão de pessoas, em uma faixa de terra de aproximadamente 360 quilômetros
quadrados, são submetidas a terror aleatório e punição arbitrária, sem nenhum
propósito a não ser humilhar e degradar.” (Noam Chomsky)