“But when you have to wait 30 years to get one
piece played —what do you think happens to a composer who is sincere and loves
to write and has to wait 30 years to have someone play a piece of his music. (…)
Had I been born in a different country or had I been born white, I am sure I
would have expressed my ideas long ago.”
Charles Mingus, sobre a música e poesia The
Chill of Death (Let my children hear music)
Impossível ler essa forte declaração
do Mingus e não fazer uma analogia com a crítica situação do preconceito de cor
no Brasil. Há diferenças marcantes em relação ao preconceito estadunidense,
principalmente na maneira como ocorreu todo o processo de libertação dos
escravos e a posterior garantia dos direitos civis. O fim da escravidão, nos
EUA, ocorreu após uma guerra fratricida que dizimou boa parte de sua população
e embora existissem valores morais contra prática degradante, os motivos
econômicos e políticos foram muito mais significativos. No Brasil, a despeito
das lutas quilombolas e de toda sorte de violência, a libertação foi relativamente
pacífica. Tanto lá como cá, a libertação não significou inclusão e muito menos
o fim do preconceito. Mas, neste ponto, talvez encontremos um aspecto
significativo que diferencie o preconceito no Brasil e nos EUA.
No fim do século XIX e início do
XX, as teorias racistas, supostamente científicas, estavam em voga em todo o
mundo. No Brasil, a elite associava a imigração, não apenas a uma
necessidade premente de mão de obra para as lavouras de café, mas, sobretudo,
à promoção do embranquecimento da população, medida considerada condicionante
para o progresso do país. Alijado dos melhores empregos e carente de
condições materiais para o desenvolvimento, o negro vai ser
significativamente marginalizado. Foi emblemática a discriminação feita nos clubes de
futebol, recém-formados, os quais impediam a participação do contingente negro
em seus quadros. O tratamento dado pelo próprio governo foi, contudo, muito
mais dramático, como o lamentável desfecho do episódio dos marinheiros negros
contra os maus-tratos da oficialidade branca, na Revolta da Chibata.
O governo Vargas (1930-1945) vai
ser importante para uma relativa mudança na análise da sociedade brasileira. As
feições corporativistas que adquire o Estado brasileiro, influenciado pelos
regimes fascistas europeus, serão evidentes nas áreas políticas e sociais, ao
buscarem eliminar diversas formas de conflito no seio da sociedade. Além de
abolir os partidos políticos, fonte de embate no campo político, a relação
patrão-empregado ficará a cargo do governo, responsável tanto pelo estabelecimento
do salário mínimo (que na prática agradou os empresários) como pela legislação
trabalhista. O sindicalista “pelego” teve uma função importante, não mais como
interlocutor do trabalhador, mas realizando função equivalente ao que o nome “pelego”
sugere nas relações entre sela e cavalo.
É no campo cultural do Governo Vargas
que nossa argumentação busca suas bases. Apoiados pelo governo, no bojo do
movimento modernista, intelectuais e artistas vão reconstruir o ideário da
nacionalidade brasileira. Leituras originais foram feitas da história do país,
mas principalmente da formação do povo brasileiro. A miscigenação, outrora
negativa, passa a ser supervalorizada, como uma característica única e
extremamente vantajosa do povo autóctone. Ser mestiço deixa de ser
negativo, mas algo a ser comemorado. O negro, nessa história, participa junto
com as outras matrizes, a portuguesa e a indígena, formando uma cultura
miscigenada, que não pertenceria a nenhuma matriz individualmente, mas a uma combinação de todas.
Gilberto Freyre, o principal intérprete desta corrente, resgatou a cultura
negra e as relações entre sinhô e escravo, no clássico Casa-Grande & Senzala. Sem descurar completamente da violência que
existia nesse relacionamento, propôs que a sociedade escravocrata dos engenhos
pernambucanos possuía contrapontos em relação à equivalente das plantações de
algodão dos EUA. Aqui, devido principalmente à ausência de veleidades de raça e
à miscibilidade do português, haveria uma proximidade maior entre casa-grande e
senzala, responsável, segundo ele, pela aceitação do negro no período pós-escravocrata.
Estava pronta a ideia de democracia racial, implícita em sua obra.
A ilusão de que o negro
brasileiro estava livre do preconceito teve efeitos perversos. Tal mito foi
responsável por manter o negro marginalizado, com poucas condições de reverter
seu quadro socioeconômico. Além de absolver o Estado e a elite
de qualquer responsabilização, a ideia de uma sociedade miscigenada e sem
preconceitos deslegitimou qualquer tentativa de luta pelos direitos civis e
sociais, cuja garantia lhes era, constantemente, solapada. O preconceito de cor
permanece, no Brasil, forte, mas, diferentemente do que ocorre nos EUA, é amiúde velado. Qualquer indicador social (educação,
população carcerária, mortos pela polícia, população miserável, salário)
escancara, entretanto, a tamanha opressão a que está sujeito o negro;
injustiças que não cessarão sem medidas contundentes.
Ainda assim, muitos insistem que
não há preconceito no Brasil, preferindo perpetuar o mito freyriano. O efeito
nefasto dessa afirmação, que insinua haver equidade de condições entre branco e
negro, algo em si preconceituoso, é a manutenção do status quo na sociedade brasileira, tão caro para alguns. Em vez de
encarar que vivemos em uma sociedade extremamente desigual e preconceituosa, convenientemente,
ignoramos a realidade. Partindo da premissa da democracia racial ou mesmo de outras falácias, medidas
afirmativas e urgentes seriam tentativas de dividir o Brasil em raças. O
preconceito, mascarado, fortalece-se, corroendo as poucas possibilidades de
mobilidade social do negro.
Charles Mingus disse que talvez
tivesse sorte diferente em outro país. Não no Brasil.
Dedicado à Nazareth Fonseca.