domingo, 29 de janeiro de 2012

O negro e o preconceito


“But when you have to wait 30 years to get one piece played —what do you think happens to a composer who is sincere and loves to write and has to wait 30 years to have someone play a piece of his music. (…) Had I been born in a different country or had I been born white, I am sure I would have expressed my ideas long ago.”  
Charles Mingus, sobre a música e poesia The Chill of Death (Let my children hear music)

Impossível ler essa forte declaração do Mingus e não fazer uma analogia com a crítica situação do preconceito de cor no Brasil. Há diferenças marcantes em relação ao preconceito estadunidense, principalmente na maneira como ocorreu todo o processo de libertação dos escravos e a posterior garantia dos direitos civis. O fim da escravidão, nos EUA, ocorreu após uma guerra fratricida que dizimou boa parte de sua população e embora existissem valores morais contra prática degradante, os motivos econômicos e políticos foram muito mais significativos. No Brasil, a despeito das lutas quilombolas e de toda sorte de violência, a libertação foi relativamente pacífica. Tanto lá como cá, a libertação não significou inclusão e muito menos o fim do preconceito. Mas, neste ponto, talvez encontremos um aspecto significativo que diferencie o preconceito no Brasil e nos EUA.

No fim do século XIX e início do XX, as teorias racistas, supostamente científicas, estavam em voga em todo o mundo. No Brasil, a elite associava a imigração, não apenas a uma necessidade premente de mão de obra para as lavouras de café, mas, sobretudo, à promoção do embranquecimento da população, medida considerada condicionante para o progresso do país. Alijado dos melhores empregos e carente de condições materiais para o desenvolvimento, o negro vai ser significativamente marginalizado. Foi emblemática a discriminação feita nos clubes de futebol, recém-formados, os quais impediam a participação do contingente negro em seus quadros. O tratamento dado pelo próprio governo foi, contudo, muito mais dramático, como o lamentável desfecho do episódio dos marinheiros negros contra os maus-tratos da oficialidade branca, na Revolta da Chibata.

O governo Vargas (1930-1945) vai ser importante para uma relativa mudança na análise da sociedade brasileira. As feições corporativistas que adquire o Estado brasileiro, influenciado pelos regimes fascistas europeus, serão evidentes nas áreas políticas e sociais, ao buscarem eliminar diversas formas de conflito no seio da sociedade. Além de abolir os partidos políticos, fonte de embate no campo político, a relação patrão-empregado ficará a cargo do governo, responsável tanto pelo estabelecimento do salário mínimo (que na prática agradou os empresários) como pela legislação trabalhista. O sindicalista “pelego” teve uma função importante, não mais como interlocutor do trabalhador, mas realizando função equivalente ao que o nome “pelego” sugere nas relações entre sela e cavalo.

É no campo cultural do Governo Vargas que nossa argumentação busca suas bases. Apoiados pelo governo, no bojo do movimento modernista, intelectuais e artistas vão reconstruir o ideário da nacionalidade brasileira. Leituras originais foram feitas da história do país, mas principalmente da formação do povo brasileiro. A miscigenação, outrora negativa, passa a ser supervalorizada, como uma característica única e extremamente vantajosa do povo autóctone. Ser mestiço deixa de ser negativo, mas algo a ser comemorado. O negro, nessa história, participa junto com as outras matrizes, a portuguesa e a indígena, formando uma cultura miscigenada, que não pertenceria a nenhuma matriz individualmente, mas a uma combinação de todas. Gilberto Freyre, o principal intérprete desta corrente, resgatou a cultura negra e as relações entre sinhô e escravo, no clássico Casa-Grande & Senzala. Sem descurar completamente da violência que existia nesse relacionamento, propôs que a sociedade escravocrata dos engenhos pernambucanos possuía contrapontos em relação à equivalente das plantações de algodão dos EUA. Aqui, devido principalmente à ausência de veleidades de raça e à miscibilidade do português, haveria uma proximidade maior entre casa-grande e senzala, responsável, segundo ele, pela aceitação do negro no período pós-escravocrata. Estava pronta a ideia de democracia racial, implícita em sua obra.

A ilusão de que o negro brasileiro estava livre do preconceito teve efeitos perversos. Tal mito foi responsável por manter o negro marginalizado, com poucas condições de reverter seu quadro socioeconômico. Além de absolver o Estado e a elite de qualquer responsabilização, a ideia de uma sociedade miscigenada e sem preconceitos deslegitimou qualquer tentativa de luta pelos direitos civis e sociais, cuja garantia lhes era, constantemente, solapada. O preconceito de cor permanece, no Brasil, forte, mas, diferentemente do que ocorre nos EUA, é amiúde velado. Qualquer indicador social (educação, população carcerária, mortos pela polícia, população miserável, salário) escancara, entretanto, a tamanha opressão a que está sujeito o negro; injustiças que não cessarão sem medidas contundentes.

Ainda assim, muitos insistem que não há preconceito no Brasil, preferindo perpetuar o mito freyriano. O efeito nefasto dessa afirmação, que insinua haver equidade de condições entre branco e negro, algo em si preconceituoso, é a manutenção do status quo na sociedade brasileira, tão caro para alguns. Em vez de encarar que vivemos em uma sociedade extremamente desigual e preconceituosa, convenientemente, ignoramos a realidade. Partindo da premissa da democracia racial ou mesmo de outras falácias, medidas afirmativas e urgentes seriam tentativas de dividir o Brasil em raças. O preconceito, mascarado, fortalece-se, corroendo as poucas possibilidades de mobilidade social do negro.

Charles Mingus disse que talvez tivesse sorte diferente em outro país. Não no Brasil.

Dedicado à Nazareth Fonseca.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Pinheirinho e a luta pela terra




foto: Roosevelt Cassio - Reuters
Ontem, a partir das 6 horas da manhã, forte aparato policial iniciou a reintegração de posse do bairro Pinheirinho em São José dos Campos, área ocupada desde 2004 por quase duas mil famílias. A ação policial aparentemente cumpriu o desejo da prefeitura, liberando o terreno e deslocando as famílias para um galpão improvisado pela prefeitura. Há muitos interesses em jogo, políticos e econômicos. Os habitantes do Pinheirinho, abandonados durante oito anos pela prefeitura joseense, período que quase coincide com a gestão do prefeito Eduardo Cury (PSDB), representaram, além da sua luta por moradia, uma luta maior, do povo brasileiro, contra o poder do capital e da propriedade.


foto: Fernando Donasci - Folhapres
A primeira abordagem do problema não poderia deixar de ser a jurídica. Isso porque a reintegração foi precedida pelo embate entre a justiça federal e estadual, inconcluso mesmo durante a ação policial, ainda em curso. O argumento principal da justiça estadual era o de que a desapropriação deveria ser realizada para preservar o sagrado direito à propriedade. Os possíveis contra-argumentos são numerosos. A Constituição brasileira guarda com carinho diversos direitos sociais, como os direitos à moradia, à dignidade humana, à educação, à vida. Se nenhum direito constitucional é absoluto, devendo ser analisado o caso concreto, ponderando os diversos direitos, o direito tratado talvez seja o menos absoluto possível, já que depende do cumprimento da função social da propriedade. Ora, o terreno ocupado é propriedade de uma empresa falida de Naji Nahas, um dos investigados da Operação Satiagraha, anulada e arquivada pelo STJ. Ainda que se argumentasse a favor da índole do empresário, uma vez que angariou o apoio judiciário em sua absolvição, não há como defender o uso que faz do terreno, por anos abandonado e com dívida de 15 milhões com a prefeitura (CF, art. 182, § 4º).

foto: Roosevelt Cassio - Reuters
Não se trata de buscar na Constituição a solução para o imbróglio. Além de ingênuo, seria desconsiderar as verdadeiras lutas que ocorrem na sociedade. No Brasil, a questão da propriedade não deve ser analisada sem se realizar uma abordagem histórica. A escravidão e as doações de sesmarias foram suficientes, durante mais de três séculos, para garantir o controle socioeconômico da população. Em 1850, concomitantemente ao fim do tráfico de escravos, os dirigentes do país, preocupados com o acesso à terra por parte dos trabalhadores (não escravos e imigrantes), decretam a Lei de Terras, que impedia a aquisição de terras devolutas, senão pela compra. Os últimos momentos do governo João Goulart são ainda mais elucidativos para perceber que, no Brasil, a propriedade é um direito sagrado para a minoria que a possui. Longe de ser revolucionária, a Reforma Agrária proposta por Celso Furtado, ministro do Planejamento, era uma medida muito mais econômica do que social, já que deveria elevar a produção de alimentos básicos (controlando a inflação) e aumentar o mercado consumidor interno (impulsionando o modelo de desenvolvimento por substituição de importações). Infelizmente, os reformistas não lograram sequer modificar a Constituição quanto à forma de indenizar a propriedade improdutiva, modificando o estabelecido pagamento prévio para uma indenização gradual com títulos do governo. Vinte anos de arbitrariedade militar foram iniciados pelo apoio da elite brasileira à defesa da propriedade e do status quo, motivo pelo qual a ruptura democrática é conhecida como golpe civil-militar.  

A análise socioeconômica seria suficiente para explicar o drama dos moradores do Pinheirinho e o tamanho de sua luta. Ela é, contudo, incompleta. Isso porque, a despeito da intransigência do prefeito Eduardo Cury e da justiça estadual (juíza Márcia Loureiro), que insistiram na solução policial, houve disposição do governo federal na regularização do terreno, cujo primeiro passo seria o cadastramento da Ocupação, pela prefeitura, no projeto Cidade Legal. As eleições municipais que ocorrerão no final deste ano tiveram um peso significativo, já que os partidos políticos do governo federal e municipal disputam a prefeitura da cidade. O interesse político na ação do prefeito Eduardo Cury (PSDB), explica a solução policial, atropelando a orientação da justiça federal e a intenção do governo federal de solucionar o problema de moradia no local.
Charge do cartunista Latuff representando o prefeito Cury, o governador Alckmin,   
o comandante da PM e a juíza estadual Márcia Loureiro
A atitude do prefeito Cury, ao mobilizar quase 2000 policiais contra o povo, sobrepondo interesses econômicos e políticos aos direitos sociais, além de extremamente covarde, é canalha, na acepção mais pejorativa que a palavra pode comportar. Os moradores do Pinheirinho não são mártires, porque há ainda um longo caminho para eles. Toda a população brasileira deve apoiar essa luta, como a mais legítima que pode existir em um país onde a concentração de terra e de renda apresenta índices tão desonestos. Apoiar a repressão é ser cúmplice com a manutenção da injustiça e dos mecanismos de controle do povo pela elite privilegiada pelo capital, mecanismos bem representados pelo que atualmente se denomina Estado Democrático de Direito.