terça-feira, 4 de outubro de 2011

Uma abordagem histórica do filme O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman


No último final de semana, tive a alegria de encontrar nas prateleiras da locadora que frequento um recente relançamento em DVD: o esquecido “O ovo da serpente” (1977), de Ingmar Bergman. Como usual nos filmes desse grande diretor sueco, a abordagem psicológica é intensa. Entretanto, o filme vai além de valorizar os conflitos individuais (como veremos subsidiariamente), analisando principalmente os transtornos coletivos da sociedade alemã do pós-Primeira Guerra, os quais, como sugere o título, resultarão na ascensão do nazismo. Há, dessa forma, além de uma leitura da sociedade alemã da República de Weimar, uma forte contextualização histórica do enredo, aspecto que particulariza o filme no acervo berguiano.
Logo no início do filme já é possível perceber qual será a linha mestra do diretor em sua busca interpretativa. A estória se passa em 1923, período em que a crise econômica atingiu a Alemanha de maneira mais intensa. A hiperinflação, uma das facetas da crise, é ainda hoje analisada por economistas pelo seu aspecto quase caricatural. Chegaram a ser necessários bilhões de marcos para comprar um maço de cigarros. A desvalorização era tão alta, que muitos proprietários rurais deixaram de vender seus produtos, o que desencadeou uma onda de saques às propriedades. A escassez tornou-se recorrente nos mercados das grandes cidades, restando aos ricos um mercado negro cada vez maior. Enquanto a economia desmoronava, o número de desempregados aumentava e, com eles, os trabalhos informais, como a prostituição. Bergman vai buscar na crise econômica de 1923 (repetida em 1929) a corrosão da sociedade alemã, o aumento da criminalidade, mas, sobretudo, o fortalecimento do antissemitismo, que será, tempos depois, o principal pilar da ideologia nazista.
Antes que analisemos a crescente identificação do judeu como responsável pela crítica situação da Alemanha, voltemos à crise econômica. A análise da hiperinflação pelo aspecto estritamente econômico desconsidera a complexidade das relações políticas e sociais do período. A inflação começou durante a guerra, quando o governo alemão contraiu vários empréstimos para saldar os gastos nos campos de batalha. A vitória rápida não se consumando e a impossibilidade de se aumentar os impostos dos grandes capitalistas (os trabalhadores estavam exauridos pelos baixos salários da economia de guerra) exigiram a crescente impressão de dinheiro, ferramenta econômica também conhecida como imposto inflacionário. A política de emissões permaneceu, contudo, após o fim da guerra. Havia forte interesse por uma parte da população na sua continuidade. A inflação como fenômeno geral, mas principalmente como ocorreu na Alemanha, promove uma distribuição da renda na sociedade, dos assalariados e pequenos burgueses (que possuem poupança em dinheiro) para os capitalistas. Estes aproveitavam a crise inflacionária de diversas maneiras, já que realizavam seus lucros em dólar ou ouro, mas têm seus gastos com salários, impostos e dívidas quitados com o marco desvalorizado. Para muitos economistas, a inflação alemã de 1923, poderia ter sido minimizada, caso o governo estivesse disposto a usar as reservas em ouro e promovesse uma reforma tributária, o que certamente enfraqueceria a sua aliança com os capitalistas.


É interessante que, mesmo sendo uma produção americana (MGM), a crítica marxista do confronto de classes, muito pertinente para o período, não tenha ficado ausente do filme. Certo momento, Abel Rosemberg (David Carradine) entra em uma festa de ricaços em busca de bebida. A cena é um forte contraponto às desgraças apresentadas no restante do filme. Desempregado, alcoólatra e corroído por tormentos diversos, ele se depara com pessoas que riem incontrolavelmente e sem motivos aparentes. Pouco registrada pela historiografia, e menos ainda pelo cinema, Bergman mostra que a tragédia da crise encontra limite claro na sociedade, não atingindo a todos da mesma maneira.
Seria ingênuo imaginar que a crise alemã de 1923 tenha sido causada apenas pela ganância de um grupo social. Talvez para evitar uma divagação excessiva, o belíssimo roteiro de Bergman tenha optado por não desenvolver as diversas outras causas, muitas delas externas.
A Primeira Guerra Mundial, consagração dos confrontos entre as potências imperialistas, não foi capaz de dirimir os antagonismos nacionalistas vindos desde o final do século XIX. Como nação derrotada, a Alemanha foi obrigada a aceitar, no Tratado de Versalhes de 1919, uma rendição humilhante, onde reconhecia a responsabilidade pela guerra e arcava com indenizações draconianas. Estas coadunavam-se com os objetivos revanchistas da França, mas promoveram efeitos desastrosos à economia alemã. Por conta da incapacidade de cumprir com os pagamentos das indenizações, a França ocupa militarmente, em 1923, a região do Vale do Ruhr, importante fonte de carvão e minérios para a indústria da Alemanha (há rápida menção do fato no filme). Os efeitos econômicos e políticos da invasão são mais uma vez extremamente prejudiciais à recuperação alemã.
Ponto relevante para a interpretação do período é saber que as origens do ultranacionalismo alemão encontram-se ainda mais próximas das negociações do pós-guerra do que da própria crise econômica. Além das altas indenizações a que foi sujeita, pelo Tratado de Versalhes a Alemanha era desprovida de um oitavo de seu território (entre outras regiões, a Alsácia-Lorena retornava à França), o exército limitado a cem mil homens, o recrutamento proibido, extradição dos “criminosos de guerra”, ocupação da margem esquerda do Reno pelos Aliados por um período de 15 anos. Vários políticos recusaram o tratado, inclusive o sociólogo Max Weber, que tinha acompanhado a delegação a Versalhes. Não bastassem as duras condições de paz, sem dúvida, o pior ponto, já mencionado, era a parte do tratado que compreendia a responsabilização pelo conflito. Influenciados por ele, políticos conservadores irão desenvolver o famoso mito da “punhalada nas costas”, segundo o qual os militares, na iminência da vitória, teriam sido traídos pelos socialistas e judeus.
O antissemitismo e o anticomunismo não podem ser considerados de maneira separada. Isolados de outras esferas políticas, os judeus encontravam espaço junto aos partidos socialistas ou comunistas, contrários, ainda hoje, à discriminação de qualquer tipo. Logo, ambos foram identificados aos esforços pela paz (1917-18), à derrubada do Reich (1918) na Revolução Alemã e ao Tratado de Versalhes. Levando em consideração o conservadorismo e o militarismo da sociedade alemã, pouco enfraquecidos com a revolução dirigida pelos social-democratas (SPD), é possível entender o medo que a elite possuía em relação aos comunistas e à bolcheviquização do país. Durante o período entre as guerras mundiais (1919-1939), a sociedade alemã vai assistir a uma polarização das tendências políticas, entre a extrema esquerda (KPD) e a extrema direita (NSDAP), intensificada nos períodos de maior crise econômica (1923 e 1929-33). Ambos os partidos buscarão o apoio dos trabalhadores (ou dos desempregados), estes desiludidos com a inépcia da social-democracia. Enquanto o Partido Comunista Alemão (KPD) atingia votações cada vez mais expressivas (1928, 1930 e 1932), a classe média e a elite aproximavam-se ainda mais do nazismo, motivados por uma resposta eficaz à crise, às lutas nacionalistas, mas, sobretudo, à ameaça comunista e à transformação social.
Por fim, embora tenhamos feito vários comentários a respeito durante o texto, o antissemitismo. Os tristes resultados do Holocausto associaram-no, historicamente, à população alemã. O seu alcance, no entanto, foi muito mais amplo. Para não voltar muito no tempo, do final do século XIX à Segunda Guerra Mundial, o antissemitismo apresentava-se forte em praticamente toda a Europa. Sem entrar em detalhes, é possível lembrar do caso Dreyfuss (1894), escândalo que dividiu a opinião pública francesa, e a entrega de judeus aos nazistas por vários países europeus durante a guerra. Segundo Hannah Arendt, em “Origens do totalitarismo”, o judeu era o bode-espiatório perfeito para o direcionamento do ódio, o que foi feito de maneira eficaz pela propaganda nazista. As condições histórico-econômicas, como vimos, fizeram o resto.
Bergman durante as filmagens de Morangos
Silvestres (1957)
O filme buscou uma abordagem específica, sem dúvida relevante: a germinação do Nazismo, impulsionada pelo fortalecimento do antissemitismo nos períodos de crise. O diretor deu pouca importância a alguns pontos externos à Alemanha, mas que influenciaram diretamente o fortalecimento do nazismo. A radicalização nacionalista ocorria no mundo todo e teve grande impacto na opinião pública alemã, que reagiu de frente ao duro tratado a que foram sujeitos. Os conservadores souberam utilizar bem esse sentimento patriótico. De qualquer forma, Bergman foi ousado ao fazer uma análise marxista da crise econômica de 1923, considerando-se, sobretudo, que o filme foi gravado em Hollywood. Apesar de o ensaio não se propor à realização de uma análise estética, vale a menção às grandes interpretações de Liv Ullman e David Carradine, além da tradicional e belíssima fotografia de Sven Nykvist. Aos amantes do diretor, é uma oportunidade particular de apreciar as clássicas análises psicológicas aplicadas à peturbada sociedade alemã da República de Weimar.
Referências:
1-       LOUREIRO, Isabel, A Revolução Alemã.
2-       SARAIVA, José Flávio Sombra (org.), História das Relações Internacionais Contemporâneas.
3-       ARENDT, HANNAH, Origens do Totalitarismo.