terça-feira, 13 de março de 2012

Resgatando nossa vocação agrícola



Após alvoroço dos industriais, a imprensa começou a dar maior importância para a questão da desindustrialização no Brasil. Segundo a imprensa, o governo e a burguesia industrial paulista, existe uma miríade de causas para o fenômeno, como a concorrência chinesa, o “custo Brasil”, a pouca competitividade de nossos produtores. O vilão principal, como todos concordam, é o câmbio valorizado, que torna os produtos nacionais fracamente competitivos em relação aos importados. Um rico vocabulário econômico foi forjado, com expressões como “guerra cambial” e “tsunami de dólares”, que, se corretos na análise, são pouco eficazes na solução do problema. O governo possui diversas ferramentas para limitar a entrada de dólares, o que diminuiria a pressão sobre o câmbio, ou para controlar as importações. Embora a associação câmbio-industrialização não deva ser desprezada, trataremos dela subsidiariamente. Nosso objetivo é relacionar o problema da desindustrialização ao surto agrícola dos últimos dez anos, impulsionado pelos altos preços das commodities, e, sobretudo, à crescente influência dos interesses da oligarquia agrária no Planalto. 

Não é o caso de ignorar a importância da agricultura para o país. É estreita a relação das modernas produções de soja com a indústria de insumos, fertilizantes, maquinário agrícola. Essa contribuição industrial, contudo, não é significativa a ponto de justificar o descompasso da participação agrícola na economia, que além de drenar recursos financeiros, direciona importantes políticas governamentais para esse fim. A votação da nova Legislação Ambiental é um exemplo. Lamentavelmente, rifa-se um imenso potencial econômico e ecológico para favorecer o lobby da oligarquia agropecuária.

Ainda que fujamos um pouco do assunto da desindustrialização, devem-se ressaltar algumas consequências sociais da concentração do latifúndio da soja e do gado. A busca de uma solução para o problema do campo está sendo negligenciada. Enquanto a França busca uma política — diga-se de passagem, legítima— de fortalecimento do pequeno e médio agricultor, que se coaduna com um projeto de descentralização populacional dos centros metropolitanos, o Brasil praticamente enterrou o débil projeto de reforma agrária, encerrando os assentamentos e permitindo a diminuição da agricultura familiar, importantíssima para o abastecimento das cidades, mas incapaz de competir sozinha com a grande propriedade. Há ainda a questão das lutas trabalhistas do trabalhador do campo, raramente sindicalizado e sujeito à ordem patriarcal, e o rastro de sangue da voracidade da expansão da fronteira agropecuária, que atinge pequenos proprietários, comunidades indígenas e seringueiros.

O que é crítico no país é que, tal qual a oligarquia cafeeira da República Velha, surge poderosa a oligarquia do gado e da soja. A influência que esse grupo possui na mídia e no governo explica as inúmeras menções honrosas à moderna agropecuária, sem ser feito correlação com o processo de desindustrialização. O problema do campo é escondido, e os grupos de trabalhadores rurais, como os sem-terras, estigmatizados. É muito questionável, entretanto, uma modernidade que se ampara na derrubada de matas, na depredação do solo e na violência praticada por capangas ou, mais frequentemente, pelas forças policiais do Estado.

MST                     Sebastião Salgado
Infelizmente, economista não vê povo, não vê fome, não vê miséria nem injustiça. Vê país grande, Brasil potência, sexta economia mundial. Realmente, não é possível deixar de verificar os aspectos benéficos da agricultura nos agregados macroeconômicos. Mas, mesmo que a economia fosse algo restrito a eles, estaríamos em uma situação de aparente conforto. Desde inícios do ano 2000, as exportações de minério de ferro e de produtos agrícolas, notadamente a soja, garantiram superávits na balança comercial, que em consequência diminuíram, relativamente, nossa dependência externa e permitiram a acumulação de divisas. O vício do conforto com frequência nos impede de tomar medidas racionais. É a própria exportação exuberante de soja, carne e minério de ferro, além da entrada de capitais especulativos, que sobrevaloriza o câmbio. O problema é que, naturalmente, um câmbio valorizado tenderia a diminuir as exportações e, consequentemente, encontrar um novo equilíbrio, mais desvalorizado. A farra das commodities, contudo, age, juntamente com o tsunami de capitais, na hipervalorização do câmbio. Mecanismos do governo que busquem a desvalorização da moeda nacional devem se cautelosos, pois isso representaria um incentivo ainda maior às inversões na agricultura. Independentemente do câmbio, tem-se que desestimular o investimento no agribusiness.

Apesar de o equilíbrio no Balanço de Pagamentos ser algo desejável, o custo é alto. Essas benesses da agricultura têm, no entanto, direcionado as escolhas do governo. Em detrimento de uma política industrializante, as decisões tomadas fortalecem a agricultura e a elite agrária. Nossa “vocação agrícola”, recentemente desenterrada, levou o governo aos principais fóruns internacionais para defender a abertura dos mercados agrícolas europeu e americano. Em troca dessa vantagem, sem dúvida importante para os países agrícolas de baixo desenvolvimento, oferecemos nosso mercado interno para os manufaturados estrangeiros. A classe média, já deslumbrada com carros e equipamentos importados, explodiria em êxtase. Felizmente, para nossa indústria, os europeus não abrem mão de sua política agrícola, que consideram importante para a segurança alimentar e desenvolvimento social.  

A dicotomia industrialização-agricultura não é recente. A Revolução de 1930, se não trouxe transformações sociais, teve um impacto fulminante nesse ponto, já que representou o abandono da “vocação agrária” por uma política industrializante. O governo, naquele momento, optou por uma política econômica que favorecesse o país como um todo, finalizando um período em que os interesses da elite oligárquica prevaleciam. Para se ter uma ideia, o peso do café nas exportações caiu para 32%, em 1940, ante 70%, em 1930.

Ainda que haja inúmeras diferenças entre os cafezais de outrora e o modo de produção utilizado atualmente, observamos a volta triunfante da oligarquia rural nas esferas de poder e na imprensa. Os impactos da agropecuária no processo de desindustrialização estão sendo, infelizmente, negligenciados, haja vista o silêncio dos meios de comunicação e dos economistas do governo. Se o sério problema da desindustrialização, um atraso no desenvolvimento do país, conta com outros aspectos relevantes como a China e a entrada de dólares, o incentivo dado à expansão agrícola tem participação importante, com o agravante de comprometer o interesse coletivo em áreas estratégicas (social, política, ambiental), para favorecer interesses eminentemente privados e oligárquicos.