quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Sobre a democracia

A discussão acerca da democracia é limitada como se o termo tratado possuísse uma acepção única e absoluta. De maneira simples, países ou seriam democráticos ou, no polo oposto, autoritários. É emblemática a declaração de Churchill de que a democracia, a despeito dos inúmeros defeitos, seria ainda o melhor sistema político existente. Em um contexto de grande embate ideológico, a muito repetida e ardilosa afirmação não esconde a exaltação ao modelo de democracia liberal presente nos países ocidentais capitalistas. É necessário compreender mais profundamente a intenção do ministro britânico e de seus pares. A divisão maniqueísta do mundo é a mais eficiente e perigosa política de manipulação das grandes massas. Seu alcance é tão universal que obras que analisaram o seu funcionamento, como 1984, de George Orwell, permanecerão atuais sempre. A defesa totalitária da unicidade da democracia serve a dois propósitos igualmente estratégicos: fortalecer governos que se clamam detentores de tal privilégio, já que garantir a crença popular nos mecanismos institucionais de reivindicação e participação política equivale à manutenção da estabilidade social; e deslegitimar Estados hostis ou regidos por sistemas político-econômicos distintos do modelo capitalista liberal. As manifestações que assolam a Europa, de alguma maneira, trazem luz ao assunto, contribuindo para questionar o até então inabalado aforismo.

Chilenos pela educação - Agosto - 2011   foto de Ivan Alvarado/Reuters

Inicialmente, é propício ampliar o entendimento sobre o conceito de democracia. Fazendo uso da explicação de Daniel Aarão Reis1, a democracia pode ser didaticamente analisada por meio de três dimensões: social, relacionada à distribuição da renda, dos direitos e da propriedade; nacional, relativa à questão da dependência econômica do país no plano internacional e os seus desdobramentos e política, referente à real participação da sociedade na dinâmica política. A classificação proposta, se já não desmistifica a supremacia do modelo de democracia clássico, delimita o seu alcance, restrito aos aspectos políticos. Ela introduz, assim, fatores relevantes para o bem-estar da sociedade, correlacionados à distribuição interna de riquezas e à inserção do Estado na divisão internacional do trabalho, fundamentais a todos os países, embora oportunamente negligenciados pelos países do Norte.
Indo um pouco além da visão tridimensional de Aarão, devemos salientar alguns aspectos dos direitos humanos, uma vez que guardam uma estreita relação com a ideia de democracia. Ainda que se compreenda, cada vez mais, a indivisibilidade dos direitos humanos, cuja garantia deve ser assegurada em sua totalidade, rendemo-nos à classificação adotada por juristas, que, acompanhando a evolução cronológica das lutas pela sua obtenção, os dividem em diferentes gerações.  Dessa maneira, os direitos de primeira geração seriam associados aos direitos civis e políticos, com marco histórico na Revolução Francesa; os de segunda geração aos direitos sociais, culturais e econômicos, obtidos pioneiramente nas lutas revolucionárias do México e da Rússia; e por fim, os direitos de terceira geração, vinculados à cooperação entre os povos em assuntos como a manutenção da paz e do meio ambiente. Embora alguns estudiosos considerem mais duas gerações de direitos humanos, os mencionados serão suficientes para a análise desejada.
Não é difícil perceber que a ideia de igualdade socioeconômica, relacionada aos direitos de segunda geração, irá confrontar-se com os objetivos burgueses, dependentes do lucro obtido pela exploração social. Os esforços capitalistas para a limitação desses direitos, iniciados no século XIX, perpassarão todo o século XX, estando presentes ainda hoje, mais de vinte anos do fim da guerra fria. Valores como a autodeterminação dos povos foram escamoteados, quando interessou impedir o êxito de regimes que pregavam a igualdade social, como ocorreu após inúmeras revoluções e mesmo simulacros de revolução socialista do século XX. Apenas para utilizar um exemplo recente, é possível perceber uma política deliberada de execração do regime chinês, não obstante os relevantes progressos socioeconômicos logrados desde a revolução de 1949. Embora muito ampliadas pela mídia, não cabe ignorar as mazelas chinesas, entre as quais as limitações à liberdade individual. Uma leitura historiográfica imparcial, porém, analisa os fatos em sua plenitude. Impossível negligenciar o tamanho da ampliação do bem-estar social de uma população composta por quase 2 bilhões de habitantes, outrora miserável e rural. 
A condenação da China e de outros países leva-nos a crer que exista uma ampla participação popular na política de democracias liberais. O sistema de eleição dos representantes, seu principal instrumento democrático, conta, entretanto, com um engajamento limitadíssimo da população, raramente exercido se não compulsório (como no Brasil). Na prática, os “representantes” do povo utilizam a fachada democrática para defenderem interesses de grupos minoritários, cujo elo estabelece-se já no financiamento da campanha pré-eleitoral. O capital domina todo o restante do mecanismo político, tornando o voto mero adorno democrático. Repetido à exaustão, o mantra de que vivemos em um sistema justo permite que o crescimento vertiginoso da concentração da riqueza prossiga sem que haja uma contestação efetiva pela maioria.
A censura à liberdade de expressão e de manifestação pública tampouco é privilégio de regimes socialistas. Sem voltarmos à guerra fria, quando, dentro do baluarte ocidental da democracia, os Estados Unidos, se desencadeou uma perseguição implacável a supostos comunistas, atualmente, os países ditos democráticos têm recorrido a toda sorte de repressão política. Mesmo sendo quase sempre chapa branca e dominada por grandes empresários, a imprensa é alvo de censura. Seria muito mais se fosse independente, mas ela conhece as regras da democracia e faz a sua parte. Dentro desses limites, realiza um trabalho muito importante de denúncia, de controle da corrupção, por exemplo. Não podemos falar de independência ou de liberdade de imprensa em um sentido amplo. Isso não existe. As novas formas de comunicação pelas redes sociais, blogs, celulares (blackberries) permitem um trabalho de mídia independente, de expressão, de divulgação, mas serão devidamente censuradas em pouco tempo. Ninguém melhor do que os gentlemen ingleses para ensinar o caminho das pedras aos líderes iranianos e sírios. Não é preciso banho de sangue para ter controle social. Basta a Ordem democrática.
Apesar de não ter a intenção de exaurir o assunto, que é extenso, não seria possível deixar de pontuar a importância do sistema Jurídico no controle social. Talvez o menos sutil de todos até agora. Pois não é capaz de dissimular a injustiça, revestir-se de uma aura democrática perante a sociedade. Ele é e tem que ser injusto mesmo, não há outra forma. É o melhor exemplo da necessidade de contemporização das lutas de classe, no completo entendimento que Marx possuía do assunto. Até por isso, é mais evidente nos países onde há maior desigualdade social. Não nego que o sistema judiciário e seu braço armado, a polícia, possuam uma função de controle de criminalidade, de excessos, mas é algo subsidiário. A sua principal função reside na defesa dos interesses de uma minoria, da propriedade privada e da manutenção da ordem. Ordem tão mais instável quanto maior as desigualdades presentes na sociedade, repetindo. A constatação de que o sistema possui dois pesos e duas medidas, uma para os pobres da cidade e do campo, sujeitos a uma polícia assassina, e outra para os grandes empresários, banqueiros e políticos, defendidos pela Suprema Corte, é crucial para correta interpretação do mundo em que vivemos.  
O principal meio de controle, ao menos o mais eficaz, não é, no entanto, explícito. Mesmo Orwell ficaria impressionado com o aparato presente no mundo ocidental, notadamente nos EUA. Falo dos EUA, pois lá, berço do mecanismo que será apresentado, tal controle é tão eficiente, que se faz o menor uso de todos os outros apresentados até agora. Apesar de a sociedade estadunidense não ser igualitária, privilegiando há séculos os WASPs (white, Anglo-Saxon, protestant), a compensação a negros, latinos e pobres ocorre pela universalização do acesso ao consumo. Marginalizados no sistema jurídico e social (os EUA só agora realizaram uma reforma capenga no sistema de saúde), eles fazem parte do sistema de crédito e de consumo mais grandioso do planeta. A eficácia desse projeto depende, evidentemente, da construção de um modelo idealizado de vida e de comportamento. O padrão estabelecido pelo American way of life não surgiu espontaneamente. A política de massas de incentivo ao consumo, impulsionada pelo cinema, televisão e publicidade, será, junto com o projeto bélico, o moto-contínuo do desenvolvimento econômico estadunidense. A ameaça socialista fortaleceu seu caráter ideológico, disseminando-o para o resto do mundo.
A insustentabilidade desse modelo transcende os efeitos deletérios ao meio ambiente, parte dos direitos humanos de terceira geração, como afirmado anteriormente. A farsa começa a ser desvendada nos países europeus. As manifestações públicas deixam clara a incompatibilidade dos anseios de bem-estar social e de consumo. Vendidos como faces da mesma moeda, foram ambos limitados a poucos privilegiados após as últimas crises. A escassez e o desemprego passaram a atingir não apenas os “cidadãos de segunda classe”, imigrantes e negros, mas os jovens brancos. O fato de as instituições financeiras ditarem as regras econômicas aos governos não significa, como supõem alguns, que o Estado liberal está enfraquecido, mas, sim, cada vez mais desmascarado. Não por outro motivo, é contra ele que se manifestam em vários países, da Espanha a Israel, excluídos de todo o mundo.

Este é o momento da esquerda, estraçalhada em 1989, ressurgir com propostas políticas. Ressurgir, primeiramente, como um contraponto ao modelo ditatorial de consumo, responsável, em grande parte, pela desigualdade, deterioração ambiental e marginalização de amplos contingentes populacionais. Uma proposta de real democracia que englobe os três componentes apresentados (social, nacional e político) só será possível se capaz de promover uma mudança de paradigma na sociedade, com nova percepção acerca do consumo e da distribuição de riquezas. Embora seja difícil crer que valores estabelecidos durante dois séculos mudem, as crises cada vez mais frequentes e profundas servirão ao propósito. O primeiro passo já foi dado: as democracias clássicas, além de serem incapazes de manter pacífica a exclusão, também deixaram de representar, como sugeriu Churchill, o estágio mais avançado de organização da sociedade.
1-      Daniel Aarão Reis, “As organizações comunistas e a democracia”, in: Marco Aurélio Garcia (org.), As esquerdas e a democracia, Rio de Janeiro, Paz e Terra, CEDEC, 1986.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Tecendo a Manhã

Acho que não poderia começar melhor o blog do que surrupiando uma poesia do João Cabral de Melo Neto. Detratores e defensores da globalização, assim como o próprio João, não poderiam imaginar que o poder de disseminação da luta e da esperança chegasse a este ponto. O grito, outrora calado, chegou longe. Se fosse escrever as nacionalidades que despertaram nas Primaveras e Verões, a lista iria longe. Cada qual a seu modo, cada grito, uma luta. Em Estados despóticos, democracia; em supostas democracias liberais, o seu desmascaramento.

Os galos brasileiros, contudo, estão sonolentos. Ou talvez, depois de tantas bordoadas (1695, 1721, 1789, 1798, 1837, 1898, 1935, 1964), estejam roucos. Não é difícil de encontrar, em gritos estrangeiros, parte de nossas reivindicações. Concentração de terra, desigualdade, democracia capenga e povo analfabeto. Como foi possível que tenhamos nos iludido com falsas riquezas de soja e carne, que só agravam o nosso arcaísmo como nação? Quando faremos uma revolução por igualdade, terra e livro?


 
Tecendo a manhã  (João Cabral de Melo Neto)

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; e de outros galos  
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.