quarta-feira, 3 de abril de 2013

Brasil Político: de 1978 a 2022


Em se tratando de política, qualquer previsão está mais próxima da especulação ou de algum interesse disfarçado. Poucos anteviram o colapso soviético quando este ainda parecia ameaçador aos estadunidenses no começo da década de 1980. Do golpe militar de 1964, por outro lado, não se pode dizer que foi algo completamente inesperado, se se considera as inúmeras tentativas golpistas civis-militares que ocorreram a partir da ascensão de Vargas em 1951. Não pretendemos vaticinar algum grande acontecimento que mudará os rumos do país, quiçá do mundo. O objetivo deste ensaio é bem mais modesto: analisar a conjuntura política recente do Brasil e conjecturar sobre o seu futuro.

Quase 30 anos de estabilidade democrática e outros 13 de relativa estabilidade econômica (considerando a crise de 1999 como marco) permitem uma definição menos obscura dos cenários e dos atores envolvidos no processo político brasileiro. Ainda assim, antes de entrarmos no período democrático, é preciso verificar a herança do período antecessor. O odioso golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil foi também responsável pelo esmagamento dos movimentos populares e esquerdistas e por um desenvolvimento econômico pautado na ampla concentração de renda. Ainda na primeira metade da década de 1970, surgem os primeiros sinais de esgotamento desse modelo de desenvolvimento autoritário. O processo de transição “lento, gradual e seguro”, além de buscar garantir a transição para um governo civil conservador, foi uma tentativa – no final bem-sucedida – de safar-se das condenações pelos excessos cometidos (daí a Anistia Geral e Irrestrita de 1979).

Já nos primeiros anos da década de 1980, a “década perdida”, é possível identificar os que seriam, até hoje, os principais atores políticos. O PMDB, a oposição moderada, guarda-chuva político que congregava de antigos apoiadores do golpe a reformistas, manteria sempre a característica que o tornara forte: a heterogeneidade de seus membros. A falta de uma ideologia clara, e mesmo de um programa político, irá afastá-lo das disputas presidenciais, fortalecendo, por outro lado, seu caráter parasita. Apesar de o fisiologismo ser uma característica comum de uma miríade de outros partidos menores, nenhum conseguiu superá-lo em competência e tamanho. Reproduz-se na política o clássico conto “Teoria do Medalhão” do Machado: é imperativo manter opacas e ambíguas as ideias para lograr alianças tão duradoras ou flexíveis quanto conveniente.

Ainda na década de 1980, surge, como uma dissidência do PMDB, o partido social-democrata. Centro-esquerda, o PSDB nascia como uma opção entre a massa amorfa do PMDB e a esquerda radical do Partido dos Trabalhadores. Apresentava um programa claro de busca de bem-estar social, aos moldes dos bem-sucedidos congêneres europeus. Foi formado por antigos militantes de esquerda, intelectuais e economistas nacionalistas e reformistas. É difícil estabelecer o momento exato da guinada à direita, mas é certo que, uma vez no poder (os anos FHC 1994-2002), aplicou uma política econômica liberal-ortodoxa, de corte de gastos sociais e privatizações. Após perder três eleições consecutivas para o PT, o partido tem grande dificuldade em encontrar uma “nova” identidade, a despeito de demonstrar afinidades com o liberalismo do Estado mínimo e teses conservadoras, como rejeição do casamento gay e da descriminalização do aborto.

O último ator político a ser analisado é o Partido dos Trabalhadores. No final da década de 1970, os “gorilas” já não eram capazes de esmagar com a mesma facilidade os movimentos sindicais. A política de controle salarial do regime militar, responsável pela baixa inflação na época do “milagre”, impôs perdas reais ao ganho do trabalhador. Era preciso “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, como Delfim Netto defendia, eufemisticamente, a acumulação de capital do empresariado. As greves do ABC serão um importante movimento político de desestruturação do regime autoritário. Da união de operários à intelectuais de esquerda, notadamente os da USP, surge o PT, tendo o socialismo como bandeira. Progressivamente, o partido vai, contudo, ocupando o vazio deixado pelo PSDB na esquerda socialdemocrática, processo explicável pela busca de apoio político e financeiro. Essa clara evolução pode ser percebida pelas transmutações sucessivas que ocorreram ao largo das diversas eleições que seu principal candidato, Lula, concorreu. A moderação ideológica andou lado a lado à entrada de recursos financeiros para as campanhas eleitorais, financiadas pelos grandes capitalistas.

Um ponto importante em qualquer análise política passa pela observação do sistema eleitoral, processo por meio do qual se obtém o poder. Na teoria, as eleições representariam uma espécie de contrato social, em que a soberania popular é delegada a políticos profissionais. Ao se constatar que, poucas vezes, o povo é o fim das políticas públicas, devemos então perquirir a razão do equívoco. A farsa das democracias liberais, notadamente no Brasil, reside no fato de que o poder político é de fato exercido pelos detentores do poder econômico. A estreita correlação dos financiamentos de campanha eleitoral com os resultados dos pleitos escancara o autoritarismo por trás do verniz democrático. Sem ignorar outros fatores, os quais serão abordados a frente, é extremamente didática a ascensão do PT ao poder federal, só possível com os novos aportes financeiros. Na última eleição, a presidente eleita contou com ainda mais recursos que os partidos considerados conservadores, compromissos que comprometerão o plano de governo do partido.

O vazio deixado pelo PT, passando da esquerda radical a uma posição moderada e ambígua (centro-esquerda), está sendo ocupado pelas dissidências do próprio partido, o PSTU e o PSOL. No entanto, atualmente, a conjuntura política e a organização dos movimentos populares não são os mesmos de outrora. Se o movimento operário teve seu grande momento nas greves do ABC e ainda alguma importante participação política ao longo das décadas de 1980 e 1990, a sua relevância foi em grande parte esvaziada com a chegada do PT ao poder. Além da cooptação de parte do sindicalismo pelos petistas, processo análogo ao ocorrido no trabalhismo de Vargas, há uma razão global e estrutural que agrega outra explicação à diminuição da relevância do operariado como força política. Trata-se da decadência do paradigma fordista de produção, que, além de exportar a fabricação de bens de massa industriais dos antigos centros desenvolvidos para a periferia, transferiu o eixo econômico do setor industrial para o setor de serviços, processo conhecido como desindustrialização. Essa “nova” mão de obra possui algumas características que não devem se modificar no curto prazo: não são sindicalizadas, tem baixo perfil reivindicatório e são relativamente bem remuneradas. Embora o Brasil seja um caso especial, em que convivem agricultura tradicional, serviços e indústrias “fordistas”, a perda de importância relativa destas minimiza o papel político da classe operária.

O movimento rural é outro exemplo. Tradicionalmente associados ao PT, os movimentos de trabalhadores do campo também diminuíram em quantidade e qualidade. Paradoxalmente, a situação do campo não sofreu melhoras quanto à distribuição de terras, como se poderia imaginar. A explicação mais bem aceita refere-se aos efeitos do programa Bolsa Família nas comunidades rurais carentes. A ajuda dada pelo governo foi o suficiente para desmobilizar um imenso contingente de trabalhadores rurais que lutavam por uma distribuição de terras mais justa. Na medida em que se analisa a dura rotina nos acampamentos, entende-se a natureza da troca de vida.

Tais partidos de extrema esquerda, contudo, possuem uma agenda ativa, agindo conjuntamente com uma miríade movimentos populares, mas de pequena relevância se analisados isoladamente, como os movimentos urbanos pela moradia e pelos direitos de minorias (negros, homossexuais, mulheres). Levando em consideração a impossibilidade de obtenção de recursos financeiros para as campanhas eleitorais e, logo, participando apenas de forma periférica na política, sua importância restringe-se na capacidade de mobilização popular, raros lampejos de cidadania do povo brasileiro, por cuja realização são em parte responsáveis.

Feita uma introdução dos atores e do modelo político utilizado no país (a dita democracia representativa), exporemos um possível quadro político para os próximos 8 anos (2014-2021), abstendo, portanto, de conjecturar sobre as eleições presidenciais de 2022. Os modelos políticos que serão utilizados como base foram apresentados à população brasileira nos anos 1990 e 2000. Embora o país possua muitos partidos políticos, a divisão bipolar (PT x PSDB) é uma boa aproximação em âmbito federal, fato que é também comum a diversos países, como os EUA. A previsão se baseará em uma macrocomparação dos dois modelos, na opinião popular e em perspectivas econômicas.

A divisão da política brasileira em dois modelos, de cara, atinge um mito, consagrado nos primeiros anos do governo Lula: o de que não haveria diferenças substanciais entre os dois partidos quando no poder. O tema é polêmico, e uma explicação completa fugiria de nossos propósitos. O processo de moderação por que passou o PT nos 1990 realmente descaracterizou a antiga agenda socialista, como já dito. A aproximação a setores conservadores, associados à grande propriedade rural e ao mercado financeiro, assentou o compromisso do partido com o capital e a propriedade. As ambiguidades são várias, e seria necessária uma crítica dedicada a elas.

Ainda assim, cabe-nos apontar as diferenças. Não obstante a timidez ante a prometida revisão da privatização da Vale do Rio Doce, o governo petista buscou fortalecer empresas estatais como a Eletrobras, Petrobras e Telebras, em contraste com a política antecessora nesse campo. O Estado brasileiro voltou a ter um papel de destaque na promoção do desenvolvimento nacional, uma visão realista das limitações estruturais da inserção atrasada e periférica no plano exterior. O país aproximou-se de Estados negligenciados pela administração tucana, como os diversos países do Sul (Oriente Médio, América Latina, África). O realismo ditou uma relação cautelosa com os Estados Unidos, ciente dos ganhos comerciais, mas precavido com os antigos ímpetos imperialistas (o enterro da Alca foi um marco).

Foi, contudo, na área social que as diferenças são mais perceptíveis. Logo no início do governo Lula, era deixada clara a diferença de prioridade dada às questões sociais por meio do anúncio programa Fome Zero. Seguiria uma política inversa à aplicada pelos militares a partir de 1964, mantida em menor grau até 2002, ou seja, um programa de aumentos reais no salário mínimo. Com o Bolsa Família, conjugaram-se auxílio financeiro pelo governo a contrapartidas na saúde e na educação pelos beneficiados. Houve ainda boas iniciativas na área de moradia popular. Parecia a aplicação de 20 anos de programas de governo, engavetados a cada derrota eleitoral. Punha-se em prática, e com sucesso, 20 anos de oposição política.

Não seria justo não considerar algumas ações positivas dos anos FHC. Ainda que para sua consecução tenha consumido virtualmente todas as reservas internacionais do país, a tão vociferada estabilidade monetária foi uma conquista significativa, com efeitos diretos na manutenção do poder de compra dos brasileiros. Sendo a inflação uma chaga que prejudica justamente os mais pobres, o seu controle pode ser considerado a principal ação social do governo liberal. No entanto, o ato de se retirar, pela intervenção estatal, milhões de brasileiros da miséria, não teria sido feito pelos partidários da “mão invisível”. O curioso é que, ao se ouvirem os discursos dos antigos dirigentes liberais, tem-se a impressão de que as políticas sociais eram fato presente. O pequeno alcance das medidas existentes, somado ao baixo desenvolvimento econômico, deve explicar a alcunha de “década perversa”, dada pelo historiador Amado Cervo1. Para o povo, o período representou desemprego e baixo poder aquisitivo, este último por conta do salário mínimo aplicado à época.

Faltou ao governo petista, porém, ações efetivas na universalização do saneamento básico, que, aliás, apresenta dados vergonhosos (próximo de 50% dos brasileiros não têm esgoto recolhido). Na Educação houve alguns progressos, dos quais merece destaque a extensão do número de cotas raciais, reforma importante para o acesso democrático ao ensino. Seria provavelmente um exagero, contudo, considerar que houve uma ruptura, o que de certa forma representou uma decepção para muitos. Historicamente, a emancipação intelectual e, logo, política tem sido uma luta das esquerdas, sendo tão ou mais importante que a “emancipação” econômica.

Não foi única área negligenciada. Pior do que a Educação ficou a situação do trabalhador rural, moeda de troca após o casamento informal com os ruralistas. Ainda que alguma coisa possa ser dita a respeito do Pronaf (Programa de Ajuda à Agricultura Familiar), a política do campo do PT foi voltada primordialmente ao benefício das grandes propriedades do agronegócio. A aliança com os ruralistas foi um dos compromissos que mantiveram o partido refém das classes dominantes. Como se percebe, a ascensão ao poder cobrou o seu preço.

O silêncio covarde em relação à questão fundiária brasileira, palco de assassinatos impunes e recorrentes, está longe de ser uma preocupação da população brasileira, politicamente domesticada. As pesquisas de opinião indicam uma aprovação contínua e avassaladora aos governos petistas, sequer maculados, para desalento das elites, pela estridente campanha midiática em torno do julgamento do Mensalão. Deduz-se que a grande – e inédita – aceitação deve-se a comparação que o povo faz entre os dois modelos, o liberal e o esquerdista-hesitante. Um sinal de que, mesmo após uma década, a memória popular ainda condena, talvez inconscientemente, o Brasil dos anos 1990.

No intuito de desvendar o futuro político do país, uma previsão da economia – talvez a parte mais difícil, pois cheia de incertezas – será o último elemento analisado. Após uma década de relativo crescimento, pode-se dizer que passamos por um momento de virtual estagnação econômica. Os esforços do governo Dilma, ainda infrutíferos, estão direcionados no sentido de aumentar o investimento privado, baixíssimo mesmo para o padrão brasileiro. Por conta dessa força tarefa, que congrega iniciativas públicas e privadas, a expectativa de que a economia deslanche é grande. Ainda que consideremos, para os próximos anos, um cenário de baixo crescimento, talvez decorrentes de crises externas, haverá ainda ganhos derivados do aumento do mercado consumidor interno, impulsionados pela expansão dos programas sociais. O duplo efeito desses programas, econômico e social, deve dar fôlego, em último caso, para um novo ciclo de crescimento – baseado no consumo e com alguma inflação –, além do aumento da base de apoio do governo na população.

Frente ao exposto, é possível asseverar serem amplas as chances de que o PT ganhe não apenas a próxima eleição como também a mais distante, de 2018. Consideramos que mesmo incertezas econômicas não devem modificar esta previsão, que seriam ainda mais confirmadas se considerássemos a desorganização do PSDB, dividido por pugnas internas. Foi levado em consideração, ademais, o provável aumento da base popular do governo, provindo da melhoria da qualidade de vida dos brasileiros mais pobres. A grande dúvida fica em torno dos caminhos possíveis a tomar pelo Partido dos Trabalhadores nos próximos 8 anos de governo, particularmente em relação às reformas agrária, educacional e política, assunto para outro ensaio.