segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Pinheirinho e a luta pela terra




foto: Roosevelt Cassio - Reuters
Ontem, a partir das 6 horas da manhã, forte aparato policial iniciou a reintegração de posse do bairro Pinheirinho em São José dos Campos, área ocupada desde 2004 por quase duas mil famílias. A ação policial aparentemente cumpriu o desejo da prefeitura, liberando o terreno e deslocando as famílias para um galpão improvisado pela prefeitura. Há muitos interesses em jogo, políticos e econômicos. Os habitantes do Pinheirinho, abandonados durante oito anos pela prefeitura joseense, período que quase coincide com a gestão do prefeito Eduardo Cury (PSDB), representaram, além da sua luta por moradia, uma luta maior, do povo brasileiro, contra o poder do capital e da propriedade.


foto: Fernando Donasci - Folhapres
A primeira abordagem do problema não poderia deixar de ser a jurídica. Isso porque a reintegração foi precedida pelo embate entre a justiça federal e estadual, inconcluso mesmo durante a ação policial, ainda em curso. O argumento principal da justiça estadual era o de que a desapropriação deveria ser realizada para preservar o sagrado direito à propriedade. Os possíveis contra-argumentos são numerosos. A Constituição brasileira guarda com carinho diversos direitos sociais, como os direitos à moradia, à dignidade humana, à educação, à vida. Se nenhum direito constitucional é absoluto, devendo ser analisado o caso concreto, ponderando os diversos direitos, o direito tratado talvez seja o menos absoluto possível, já que depende do cumprimento da função social da propriedade. Ora, o terreno ocupado é propriedade de uma empresa falida de Naji Nahas, um dos investigados da Operação Satiagraha, anulada e arquivada pelo STJ. Ainda que se argumentasse a favor da índole do empresário, uma vez que angariou o apoio judiciário em sua absolvição, não há como defender o uso que faz do terreno, por anos abandonado e com dívida de 15 milhões com a prefeitura (CF, art. 182, § 4º).

foto: Roosevelt Cassio - Reuters
Não se trata de buscar na Constituição a solução para o imbróglio. Além de ingênuo, seria desconsiderar as verdadeiras lutas que ocorrem na sociedade. No Brasil, a questão da propriedade não deve ser analisada sem se realizar uma abordagem histórica. A escravidão e as doações de sesmarias foram suficientes, durante mais de três séculos, para garantir o controle socioeconômico da população. Em 1850, concomitantemente ao fim do tráfico de escravos, os dirigentes do país, preocupados com o acesso à terra por parte dos trabalhadores (não escravos e imigrantes), decretam a Lei de Terras, que impedia a aquisição de terras devolutas, senão pela compra. Os últimos momentos do governo João Goulart são ainda mais elucidativos para perceber que, no Brasil, a propriedade é um direito sagrado para a minoria que a possui. Longe de ser revolucionária, a Reforma Agrária proposta por Celso Furtado, ministro do Planejamento, era uma medida muito mais econômica do que social, já que deveria elevar a produção de alimentos básicos (controlando a inflação) e aumentar o mercado consumidor interno (impulsionando o modelo de desenvolvimento por substituição de importações). Infelizmente, os reformistas não lograram sequer modificar a Constituição quanto à forma de indenizar a propriedade improdutiva, modificando o estabelecido pagamento prévio para uma indenização gradual com títulos do governo. Vinte anos de arbitrariedade militar foram iniciados pelo apoio da elite brasileira à defesa da propriedade e do status quo, motivo pelo qual a ruptura democrática é conhecida como golpe civil-militar.  

A análise socioeconômica seria suficiente para explicar o drama dos moradores do Pinheirinho e o tamanho de sua luta. Ela é, contudo, incompleta. Isso porque, a despeito da intransigência do prefeito Eduardo Cury e da justiça estadual (juíza Márcia Loureiro), que insistiram na solução policial, houve disposição do governo federal na regularização do terreno, cujo primeiro passo seria o cadastramento da Ocupação, pela prefeitura, no projeto Cidade Legal. As eleições municipais que ocorrerão no final deste ano tiveram um peso significativo, já que os partidos políticos do governo federal e municipal disputam a prefeitura da cidade. O interesse político na ação do prefeito Eduardo Cury (PSDB), explica a solução policial, atropelando a orientação da justiça federal e a intenção do governo federal de solucionar o problema de moradia no local.
Charge do cartunista Latuff representando o prefeito Cury, o governador Alckmin,   
o comandante da PM e a juíza estadual Márcia Loureiro
A atitude do prefeito Cury, ao mobilizar quase 2000 policiais contra o povo, sobrepondo interesses econômicos e políticos aos direitos sociais, além de extremamente covarde, é canalha, na acepção mais pejorativa que a palavra pode comportar. Os moradores do Pinheirinho não são mártires, porque há ainda um longo caminho para eles. Toda a população brasileira deve apoiar essa luta, como a mais legítima que pode existir em um país onde a concentração de terra e de renda apresenta índices tão desonestos. Apoiar a repressão é ser cúmplice com a manutenção da injustiça e dos mecanismos de controle do povo pela elite privilegiada pelo capital, mecanismos bem representados pelo que atualmente se denomina Estado Democrático de Direito.

2 comentários:

  1. direto ao ponto e muito embasada sua análise. é um episódio que explicita como nosso passado patrimonialista está bem vivo.

    só corrige lá "dois mil famílias"

    continue o bom trabalho!

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  2. Texto interessante, ainda nao havia lido uma análise tao consistente contra a desocupacao do pinheirinho... Nao conheço detalhes do processo juridico associado à desocupação, mas uma coisa é certa, além dos pobres que encontram no local sua única opção de moradia, há muita especulacao imobiliaria tambem. Diversas pessoas que compraram terrenos sabidamente ilegais a preços baixissimos na expectativa da leniencia do sistema jurídico e aguardando açoes politicas populistas (sem foco no planejamento urbanistico da cidade) de regularizacao. Enquanto aceitarmos que esse tipo de ocupacao se torne o novo modelo de planejamento urbanistico nacional, nossas cidades estao fadadas ao caos e baixa qualidade de vida. Hoje existem mecanismos de inclusao como minha casa minha vida... Temos que deixar claro que a ocupacao ilegal nao e aceita pela sociedade como um todo. Além disso, o terreno pertence a massa falida da empresa, portanto patrimonio dos seus trabalhadores e nao de um milionario corrupto...

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