Temo
estarmos regredindo como cidadãos. Além de fenômenos mundiais, que
evidentemente nos afetam, a exemplo da valorização do
consumo, do uso de automóveis cada vez maiores, do aumento da carga horário de
trabalho e do preconceito, no Brasil o pensamento
reacionário se acirra, particularmente, em algumas áreas. Busco fazer uma rápida descrição desse
radicalismo, associando-o a suas possíveis causas, como a herança de duas
décadas de ditadura militar e a influência de nossa imprensa conservadora. A
ditadura terá, neste ensaio, amplo papel, já que o atual movimento reacionário se
fortalece concomitantemente ao revisionismo do período autoritário e da violência
então praticada.
Apesar
de o conservadorismo não se resumir apenas à manutenção de privilégios, em
países com grandes desigualdades sociais é natural que seja grande o confronto
direto entre os que anseiam mudanças e os que as evitam a todo custo. No
Brasil, a concentração fundiária e de riqueza, decorrentes de um longo processo
de colonização, foram responsáveis, em grande parte, pela caracterização da
sociedade como a conhecemos. A despeito das diversas tentativas, a ausência de
um processo revolucionário, como ocorrera em praticamente todos os países
desenvolvidos, permitiu à elite dirigente total controle dos meios de geração e
distribuição de riquezas. A sociedade brasileira às vésperas do indecente dia 31
de março encontrava-se no paroxismo das contradições sociais, com extensa
organização dos movimentos populares.
Era necessário
parar o “carro revolucionário”, tal qual afirmara o político do Império
Bernardo Pereira de Vasconcelos quando do movimento que resultou na abdicação de
D. Pedro I em 1831. Com ampla participação civil, congregando de empresários a
intelectuais, da Igreja aos partidos conservadores, o golpe militar foi um movimento
reacionário por natureza. Contra eles, os estudantes, trabalhadores urbanos e
rurais, as Ligas Camponesas, sindicatos e uma miríade de partidos de esquerda. Como
é comum nesses momentos, os golpistas elegeram dois inimigos: o comunismo e a corrupção.
Pouquíssimo foi feito em relação aos corruptos, importantes aliados dos militares. A
possível ameaça ao que os milicos chamavam, hipócrita e ironicamente, de “revolução”
deu ensejo, contudo, às arbitrariedades e perseguições. Em pouco tempo, intelectuais, políticos e mesmo a conservadora Igreja católica retiraram o apoio ao regime
nefasto.
Se chegamos ao fundo do poço como civilização, o movimento de redemocratização pareceu o mais próximo do que se poderia chamar
de um “iluminismo brasileiro”. À exceção daqueles que muito prosperaram durante
o regime, os brasileiros como um todo se uniram pelos direitos humanos,
pelo voto, contra os militares e seus seguidores. Nesse momento histórico, ainda
criança, iniciam as minhas primeiras impressões políticas. Estava claro que
passáramos por um período obscuro e que, naquele momento, voltávamos a exercer
as prerrogativas mais singelas da cidadania.
Progressivamente,
a percepção do ocorrido ia se ampliando. Embora a Carta Cidadã de 1988 tivesse nos
livrado de boa parte do “entulho autoritário”, cedo perceberíamos que da ferida
ainda jorrava sangue. Os militares voltavam aos quartéis, mas a promiscuidade
que existira entre civis e militares em torno do aparato repressor deixara
sequelas*. Na polícia mantivemos o pior do regime. A sociedade brasileira seguirá
pagando o preço por não condenar os assassinatos e as torturas cometidas pelo
governo militar. À imputabilidade de outrora, que contava com a anuência dos presidentes militares, soma-se a atual, legitimada por uma anistia farsesca.
Cresci
alimentando um medo em relação à polícia. A violência policial, na medida em que é direcionada à periferia
e às favelas, tem sido bem aceita pelo restante da
sociedade. Quem perdoa as bárbaras torturas de outrora pode conviver com a arbitrariedade
de agora. A aberração é frequente e abertamente defendida
por políticos que pregam a “tolerância zero” da polícia, campanha historicamente associada a Paulo Maluf, mas que hoje tem sido utilizada ostensivamente pelos tucanos em SP.
Passados
muitos anos da redemocratização, o radicalismo reacionário vai saindo do
armário. Amparados muitas vezes pelo anonimato da internet, defendem a truculência policial
e recordam nostalgicamente o período militar. Em São Paulo, tido como um dos
estados mais desenvolvidos, o governador Geraldo Alckmin nomeou como comandante
da Rota um dos envolvidos no massacre do Carandiru, quando 111 presos foram
assassinados. Mais recentemente, podemos recordar a ação policial no
Pinheirinho, na Cracolândia, na Marcha da Maconha etc. Talvez o melhor símbolo
desse reacionarismo tenha sido o sucesso estrondoso da série de filmes “Tropa
de Elite”. Enquanto a Zona Sul carioca aplaudia a “política social” do governo
do Rio nas ocupações das favelas, seus filhos
assistiam ao Capitão Nascimento torturando e matando bandidos. Ainda que o filme seja de boa qualidade, com interessante descrição da realidade do tráfico de drogas, da corrupção da polícia e do surgimento das milícias, ele não esconde a glamourização do
BOPE e seus métodos truculentos, postos como um mal menor pelo diretor.
Sem falar das desprezíveis emissoras de televisão, excessivamente toscas, a imprensa escrita participa, a seu modo, da onda reacionária. Embora a elegância não permita que um jornal como a Folha de S. Paulo defenda a violência, este encontra outros meios, mais silenciosos e sutis. A estigmatização que faz dos movimentos populares como os sem-tetos, MST, sindicatos, que por sua vez não dispõem de equivalente meio de defesa, tem servido como uma branda apologia da repressão policial. Infelizmente, falta-nos um Pasquim, que escancare este triste momento por que passamos.
Para ficarmos na Folha, jornal que acompanho, sua participação engloba ainda o que tenho chamado de revisionismo histórico do período autoritário no país. Mais uma vez, se não o defende diretamente, insiste em apontar os crimes cometidos pela esquerda armada e os planos de revolução socialista que esta possuía. Ademais, em seus editoriais recentes, posicionou-se contra a revisão da Anistia, bem como tece ressalvas à tardia tentativa de recuperar nossa memória do período por meio da Comissão da Verdade. Após chamar o regime militar de "Ditabranda", o jornal paulista parece tentar mostrar, portanto, uma nova história, na qual os militares foram as vítimas e os guerrilheiros, os bandidos.
Para ficarmos na Folha, jornal que acompanho, sua participação engloba ainda o que tenho chamado de revisionismo histórico do período autoritário no país. Mais uma vez, se não o defende diretamente, insiste em apontar os crimes cometidos pela esquerda armada e os planos de revolução socialista que esta possuía. Ademais, em seus editoriais recentes, posicionou-se contra a revisão da Anistia, bem como tece ressalvas à tardia tentativa de recuperar nossa memória do período por meio da Comissão da Verdade. Após chamar o regime militar de "Ditabranda", o jornal paulista parece tentar mostrar, portanto, uma nova história, na qual os militares foram as vítimas e os guerrilheiros, os bandidos.
O
reacionarismo é um fenômeno amplo, e poderíamos ter abordado outras faces do
assunto, como o preconceito. Sem querer
estender demasiadamente, a ideia foi apenas analisar o crescimento do
pensamento reacionário no que ele se relaciona com a violência policial e a
ditadura. Dessa forma, o foco foi a crescente aceitação da truculência policial
e certa tentativa de revisionismo do período ditatorial, este amparado pela
imprensa. O reacionarismo brasileiro é certamente bem mais silencioso que seus
congêneres europeus, o que esconde, por outro lado, o seu tamanho e risco. Pelo
fato de estar amplamente inserido na sociedade, olvidamos de chamá-lo pelo seu
verdadeiro e detestável nome: fascismo.
*Elio
Gaspari, em “A Ditadura Escancarada”, analisa detalhadamente os efeitos
deletérios da tortura na sociedade, já que, além da afronta aos direitos
humanos, contamina a sociedade e as instituições governamentais como um todo.
Excelente texto, bravo Diego !
ResponderExcluirEu vivi e senti na pele o peso do arbítrio elevado ao paroxismo do terrorismo de estado.
Precisamos ainda - e muito - de educação cidadã e de Justiça expedita, eficiente e efetiva !
O Brasil é e será sempre o produto de nossas virtudes, desvirtudes, pecados, pecadilhos, acertos, desmandos, conivências e omissões ...
Grande abraço
nuno cesar