quarta-feira, 25 de julho de 2012

RETROCESSO





Temo estarmos regredindo como cidadãos. Além de fenômenos mundiais, que evidentemente nos afetam, a exemplo da valorização do consumo, do uso de automóveis cada vez maiores, do aumento da carga horário de trabalho e do preconceito, no Brasil o pensamento reacionário se acirra, particularmente, em algumas áreas. Busco fazer uma rápida descrição desse radicalismo, associando-o a suas possíveis causas, como a herança de duas décadas de ditadura militar e a influência de nossa imprensa conservadora. A ditadura terá, neste ensaio, amplo papel, já que o atual movimento reacionário se fortalece concomitantemente ao revisionismo do período autoritário e da violência então praticada.




Apesar de o conservadorismo não se resumir apenas à manutenção de privilégios, em países com grandes desigualdades sociais é natural que seja grande o confronto direto entre os que anseiam mudanças e os que as evitam a todo custo. No Brasil, a concentração fundiária e de riqueza, decorrentes de um longo processo de colonização, foram responsáveis, em grande parte, pela caracterização da sociedade como a conhecemos. A despeito das diversas tentativas, a ausência de um processo revolucionário, como ocorrera em praticamente todos os países desenvolvidos, permitiu à elite dirigente total controle dos meios de geração e distribuição de riquezas. A sociedade brasileira às vésperas do indecente dia 31 de março encontrava-se no paroxismo das contradições sociais, com extensa organização dos movimentos populares.

Era necessário parar o “carro revolucionário”, tal qual afirmara o político do Império Bernardo Pereira de Vasconcelos quando do movimento que resultou na abdicação de D. Pedro I em 1831. Com ampla participação civil, congregando de empresários a intelectuais, da Igreja aos partidos conservadores, o golpe militar foi um movimento reacionário por natureza. Contra eles, os estudantes, trabalhadores urbanos e rurais, as Ligas Camponesas, sindicatos e uma miríade de partidos de esquerda. Como é comum nesses momentos, os golpistas elegeram dois inimigos: o comunismo e a corrupção. Pouquíssimo foi feito em relação aos corruptos, importantes aliados dos militares. A possível ameaça ao que os milicos chamavam, hipócrita e ironicamente, de “revolução” deu ensejo, contudo, às arbitrariedades e perseguições. Em pouco tempo, intelectuais, políticos e mesmo a conservadora Igreja católica retiraram o apoio ao regime nefasto.

Se chegamos ao fundo do poço como civilização, o movimento de redemocratização pareceu o mais próximo do que se poderia chamar de um “iluminismo brasileiro”. À exceção daqueles que muito prosperaram durante o regime, os brasileiros como um todo se uniram pelos direitos humanos, pelo voto, contra os militares e seus seguidores. Nesse momento histórico, ainda criança, iniciam as minhas primeiras impressões políticas. Estava claro que passáramos por um período obscuro e que, naquele momento, voltávamos a exercer as prerrogativas mais singelas da cidadania.

Progressivamente, a percepção do ocorrido ia se ampliando. Embora a Carta Cidadã de 1988 tivesse nos livrado de boa parte do “entulho autoritário”, cedo perceberíamos que da ferida ainda jorrava sangue. Os militares voltavam aos quartéis, mas a promiscuidade que existira entre civis e militares em torno do aparato repressor deixara sequelas*. Na polícia mantivemos o pior do regime. A sociedade brasileira seguirá pagando o preço por não condenar os assassinatos e as torturas cometidas pelo governo militar. À imputabilidade de outrora, que contava com a anuência dos presidentes militares, soma-se a atual, legitimada por uma anistia farsesca.

Cresci alimentando um medo em relação à polícia. A violência policial, na medida em que é direcionada à periferia e às favelas, tem sido bem aceita pelo restante da sociedade. Quem perdoa as bárbaras torturas de outrora pode conviver com a arbitrariedade de agora. A aberração é frequente e abertamente defendida por políticos que pregam a “tolerância zero” da polícia, campanha historicamente associada a Paulo Maluf, mas que hoje tem sido utilizada ostensivamente pelos tucanos em SP. 





Passados muitos anos da redemocratização, o radicalismo reacionário vai saindo do armário. Amparados muitas vezes pelo anonimato da internet, defendem a truculência policial e recordam nostalgicamente o período militar. Em São Paulo, tido como um dos estados mais desenvolvidos, o governador Geraldo Alckmin nomeou como comandante da Rota um dos envolvidos no massacre do Carandiru, quando 111 presos foram assassinados. Mais recentemente, podemos recordar a ação policial no Pinheirinho, na Cracolândia, na Marcha da Maconha etc. Talvez o melhor símbolo desse reacionarismo tenha sido o sucesso estrondoso da série de filmes “Tropa de Elite”. Enquanto a Zona Sul carioca aplaudia a “política social” do governo do Rio nas ocupações das favelas, seus filhos assistiam ao Capitão Nascimento torturando e matando bandidos. Ainda que o filme seja de boa qualidade, com interessante descrição da realidade do tráfico de drogas, da corrupção da polícia e do surgimento das milícias, ele não esconde a glamourização do BOPE e seus métodos truculentos, postos como um mal menor pelo diretor.

Sem falar das desprezíveis emissoras de televisão, excessivamente toscas, a imprensa escrita participa, a seu modo, da onda reacionária. Embora a elegância não permita que um jornal como a Folha de S. Paulo defenda a violência, este encontra outros meios, mais silenciosos e sutis. A estigmatização que faz dos movimentos populares como os sem-tetos, MST, sindicatos, que por sua vez não dispõem de equivalente meio de defesa, tem servido como uma branda apologia da repressão policial. Infelizmente, falta-nos um Pasquim, que escancare este triste momento por que passamos.


Para ficarmos na Folha, jornal que acompanho, sua participação engloba ainda o que tenho chamado de revisionismo histórico do período autoritário no país. Mais uma vez, se não o defende diretamente, insiste em apontar os crimes cometidos pela esquerda armada e os planos de revolução socialista que esta possuía. Ademais, em seus editoriais recentes, posicionou-se contra a revisão da Anistia, bem como tece ressalvas à tardia tentativa de recuperar nossa memória do período por meio da Comissão da Verdade. Após chamar o regime militar de "Ditabranda", o jornal paulista parece tentar mostrar, portanto, uma nova história, na qual os militares foram as vítimas e os guerrilheiros, os bandidos.

O reacionarismo é um fenômeno amplo, e poderíamos ter abordado outras faces do assunto, como o preconceito.  Sem querer estender demasiadamente, a ideia foi apenas analisar o crescimento do pensamento reacionário no que ele se relaciona com a violência policial e a ditadura. Dessa forma, o foco foi a crescente aceitação da truculência policial e certa tentativa de revisionismo do período ditatorial, este amparado pela imprensa. O reacionarismo brasileiro é certamente bem mais silencioso que seus congêneres europeus, o que esconde, por outro lado, o seu tamanho e risco. Pelo fato de estar amplamente inserido na sociedade, olvidamos de chamá-lo pelo seu verdadeiro e detestável nome: fascismo.

*Elio Gaspari, em “A Ditadura Escancarada”, analisa detalhadamente os efeitos deletérios da tortura na sociedade, já que, além da afronta aos direitos humanos, contamina a sociedade e as instituições governamentais como um todo.


Um comentário:

  1. Excelente texto, bravo Diego !

    Eu vivi e senti na pele o peso do arbítrio elevado ao paroxismo do terrorismo de estado.

    Precisamos ainda - e muito - de educação cidadã e de Justiça expedita, eficiente e efetiva !

    O Brasil é e será sempre o produto de nossas virtudes, desvirtudes, pecados, pecadilhos, acertos, desmandos, conivências e omissões ...

    Grande abraço


    nuno cesar

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