quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Formação da identidade da elite brasileira

A formação da elite brasileira, embora influenciada pela formação do povo brasileiro em sentido amplo, não se confunde com esta. Assim, se o amálgama das matrizes indígena, europeia e africana foram os fundamentos de nossa cultura, é preciso ir além e verificar de que maneira a elite impediu ou tentou impedir que tal influência se solidificasse em seu seio. Mais de um século após a abolição da escravidão, a elite brasileira ainda é branca, almeja assemelhar-se aos europeus e consumir como os estadunidenses. Por quê?

No início do século XIX, a influência europeia no Brasil e nos demais países sul-americanos foi decorrência direta da inserção destes países na distribuição internacional do trabalho então vigente. Diferentemente das colônias hispano-americanas, entretanto, o Brasil passou por experiências peculiares que acentuaram não apenas o contato político com a Europa como também o cultural. Até 1827 não havia universidades no Brasil, o que exigiu dos filhos de senhores e políticos a formação além-mar, notadamente nas universidades de Coimbra e Montpellier. Em função disto, como contraponto ao que existia na América Espanhola, houve certa homogeneidade intelectual das elites brasileiras, o que foi considerado por José Murilo de Carvalho1 fator preponderante nos acontecimentos políticos do século XIX.

Somado à formação intelectual, a transmigração da corte portuguesa, em 1808, aprofundou definitivamente o contato com a cultura europeia. Centro político do que será o Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves (1815), o Brasil recebeu ainda cerca de dez mil palacianos fugidos de Napoleão2. Ademais, a abertura dos portos (1808) e, sobretudo, o Tratado de Navegação e Comércio com a Inglaterra (1810) inundaram o Rio de Janeiro de comerciantes e produtos ingleses. O quadro de Jean-Baptiste Debret representando a coroação de D. Pedro I resume bem: em terras tupiniquins, o que melhor representava o grupo dirigente da nação eram a pompa, os lustres, os títulos de nobreza e os rituais vigentes na Europa de 1822. Instaurou-se uma monarquia constitucional nos trópicos!



Os anos se passam e o abismo entre discurso e realidade cresce e constrange. Enquanto na Tribuna parlamentares exaltam ideais de liberdade e justiça, repetindo Tocqueville, Bentham e Mill, a escravidão envergonha e corrói toda a sociedade. Em clássico ensaio, “As ideias fora do lugar”3, Roberto Schwartz aponta essas e outras incoerências de uma elite que se queria ilustrada, culta, europeia.

O desejo de identificação com o europeu não esconde, entretanto, outro desejo: o de não ser negro, não ser índio e não ser mestiço. A negação de tais grupos sociais os condena até hoje, mas o paroxismo ocorreu com as teorias racistas e o projeto de embranquecimento da população no final do século XIX.  Algum esforço contrário pode ser verificado com o movimento romântico indianista, cujo maior expoente foi, ironicamente, um defensor da escravidão negra, José de Alencar4. Ainda assim, a despeito de manter certas características da cultura indígena, este movimento literário buscava associar, artificialmente, o índio à moral e à nobreza europeia. Mesmo a miscigenação, cultuada a partir da década de 1930, tem servido mais à conveniência de minimizar a força e a riqueza que diversas culturas (negra, quilombola, indígena, sertaneja e outras) possuem individualmente. Paradoxalmente, valoriza-se a miscigenação mais como uma categoria étnico-cultural amorfa, sem rosto, utilizada para negar vicissitudes culturais de diferentes grupos sociais. Ou, para ficar num exemplo recente, não é difícil encontrar o argumento da miscigenação sendo utilizado para deslegitimar os programas de ação afirmativa.

Feita a associação da elite brasileira aos valores culturais da Europa Ocidental, falta apontar a relação contemporânea desta elite com a cultura branca estadunidense. É inegável que a “civilização” impõe-se pelo poder, e neste caso nada mais natural do que nos submetermos à inundação de filmes, livros e músicas provenientes do mais rico e poderoso país. Essa explicação, contudo, é parcial. Se no século XIX a elite buscou diferenciar-se de pobres, negros, índios e mestiços através da identificação com o europeu, atualmente e à medida que fatores fenotípicos perdem relevância socioeconômica, o principal elemento de distinção é o consumo.

É por meio da aquisição dos chamados “bens posicionais”5 que a elite contemporânea se destaca e alcança notável proeminência na sociedade. Os bens posicionais são bens que conferem status ao proprietário por possuírem alguma exclusividade. São usualmente associados aos bens de luxo, como mansões, carrões, roupas de grife, relógios caros, viagens exóticas, mas também outros utensílios mais acessíveis como o último lançamento de iPod. Em uma sociedade que cultua o individualismo, a posse de bens posicionais ganha uma relevância impressionante. Assisti-se a uma verdadeira “corrida armamentista do consumo”, nas palavras de Eduardo Giannetti.

Foi Rousseau6 quem melhor analisou o processo de criação de “novas necessidades”. Segundo ele, o luxo é necessário justamente porque discrimina as pessoas. Antigas formas de distinção social, antes associadas a um direito divino ou à nobreza, foram sendo sucedidas, durante o Iluminismo, pela posse ou não de itens de luxo, como a fartura de comida ou obras de arte. A origem da desigualdade está, portanto, na propriedade, desde então o direito burguês mais violentamente defendido.

A explicação de Rousseau faz ainda mais sentido quando adaptada a contemporaneidade, já que o consumismo tem-se desenvolvido incrivelmente. Além disso, é justamente nos países que possuem maior desigualdade social que o consumo exacerbado é mais caricatural, como nos Estados Unidos e Brasil. Aqui como lá, desigualdades étnicas se confundem com desigualdades socioeconômicas. À segregação étnica, impõe-se outra, a econômica. E é por meio do consumo de bens posicionais que se escancara esta última. A importância que se dá, no Brasil, a um carro, a um bem eletrônico ou a uma viagem a Punta Cana pouco tem a ver com o valor de uso, mas, sim, com a capacidade que este bem possui de “diferenciar” uma pessoa de outra. Compreende-se, então, de que maneira a biografia de Steve Jobs pode ser mais lida que a de Martin Luther King ou Gandhi. Aquele, talvez melhor que ninguém, apreendeu os meios mais eficientes de gerar esse novo tipo de valor. O resultado impressiona: multidões fazem filas pelo efêmero privilégio da exclusividade.

Ainda que a emulação do padrão de consumo americano esteja presente em toda a sociedade, é na elite e na classe média alta que ela é mais perniciosa, uma vez que tal estrato monopoliza o poder econômico e político. Em um país eminentemente agroexportador, a ode ao liberalismo econômico mal disfarça o real interesse em adquirir bens de luxo importados. O custo do atraso econômico é repartido, como usual, por toda a sociedade. A mediocridade de um comportamento que aprofunda a chaga de milhões de habitantes no planeta talvez encontre limite apenas na ameaça à vida humana, fruto do esgotamento dos recursos, da poluição e do aquecimento global. 

Nos últimos anos, o Brasil acompanhou uma redução da desigualdade, decorrência direta de programas sociais feitos em escala inédita. Políticas de ação afirmativa, como as cotas raciais, têm permitido a ascensão de negros à condição de nova classe média. Por outro lado, o consumismo tem pouca ou nenhuma relação com a cor da pele ou a etnia, o que mantém o agravo desse consumo desenfreado. Que as pessoas prescindam dos bens posicionais e se destaquem apenas por seus “talentos posicionais” pode, infelizmente, soar utópico. Mas, se a racionalidade e a sensibilidade humana não encontrarem uma saída, há uma chance de que a fúria ambiental o faça. Veremos.

1- Teatro das Sombras; José Murilo de Carvalho.
2- História do Brasil Nação, vol 1 (1808-1831); coordenação Alberto da Costa e Silva.
3- Ao vencedor as batatas; Roberto Schwartz.
4- Cartas a Favor da Escravidão; Tâmis Parron.
6- Discurso Sobre a Origem da Desigualdade; Jean-Jacques Rousseau

3 comentários:

  1. faltou notar que a imitação imperfeita da cultura europeia leva ao fenômeno do rastaquerismo...

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  2. Rastaquerismo? Desconheço, Leo. Que é isso?

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  3. é ser metido a sofisticado e ser apenas ridículo. novorriquismo. http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/curiosidades-etimologicas/rastaquera-uma-heranca-do-racismo-frances/
    abs

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